31.12.15

Balanços rombos

Costeau, “The Last Good Day of the Year”, in https://www.youtube.com/watch?v=8uQJ2uFhurM
Diz-se que o derradeiro dia é imperativo dia de balanço. Nunca entendi bem (ou fiz de conta que não) se se trata dos balancetes da contabilidade ou se falamos de balanço como da agitação sentida num navio em dia de mar tempestuoso.
No deve e haver de um ano, a necessária contabilidade do ano em retrospetiva. A memória fresca não habilita capazes conclusões. Aprendemos com os historiadores que se impõe um período de luto sobre os acontecimentos, ou corremos o risco de trazer à superfície lentes desfocadas pela proximidade dos acontecimentos, sem que seja possível ter a noção disso. Em não havendo temperança para diligenciar ângulos capazes, o melhor método é deixar o derradeiro dia do ano entregue à desmemória. Assim como assim, se a noite que habilita um novo ano for ungida pelo álcool, não se concebe lúcida métrica dos acontecimentos acantonados no ano civil. Não interessa: nem evocar as proezas, nem as lágrimas larvares sobre assuntos que mereciam arrependimento ou contrição, caso ambos não fossem inúteis.
Ou, talvez, o balanço esteja relacionado com o rombo que a presciência leva quando escolhemos o último dia do calendário para introspeções, elas próprias irrelevantes. Outra vez a bebida à colação: quem pode ter a pretensão de arranjar lisas leituras dos pessoais acontecimentos se o raciocínio está alterado? Há, contudo, quem jure que só consegue lucidez se a mesma vier da evaporação do álcool contido no copo por onde se bebe. (Uma vez ouvi, na mesa do lado do restaurante, um patusco certificar que o cunhado, motorista de camiões TIR, só desempenhava capazmente a função depois de beber uma garrafa de vinho tinto ao almoço.)
Se são importantes os balanços que dão corpo a uma necessária peregrinação interior – necessidade sobre a qual tenho dúvidas não existenciais –, a pior altura é o derradeiro dia do calendário. Porque temos pressa de virar a página e encontrar as rédeas do ano que se lhe segue. Ou por não termos essa pressa. No primeiro caso, não temos distanciamento para uma catarse objetiva pela pressa em ver atirado para trás das costas o ano que se esgota. No segundo caso, se quisermos celebrar um ano cheio de proezas, como não há memória em anos anteriores, também somos tomados de assalto pela tirania do tempo: querendo adiar a meta do ano que finda, porventura temendo que o ano nascente seja a ponta solta de uma trajetória descendente.
O dia número trezentos e sessenta e cinco é apenas o que antecede o que seria o trigésimo sexagésimo sexto, não mandassem as convenções que mandam arquivar o tempo em compartimentos estanques.

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