Costeau, “The Last Good Day
of the Year”, in https://www.youtube.com/watch?v=8uQJ2uFhurM
Diz-se que o derradeiro dia é imperativo dia de balanço.
Nunca entendi bem (ou fiz de conta que não) se se trata dos balancetes da
contabilidade ou se falamos de balanço como da agitação sentida num navio em
dia de mar tempestuoso.
No deve e haver de um ano, a necessária contabilidade do
ano em retrospetiva. A memória fresca não habilita capazes conclusões. Aprendemos
com os historiadores que se impõe um período de luto sobre os acontecimentos,
ou corremos o risco de trazer à superfície lentes desfocadas pela proximidade
dos acontecimentos, sem que seja possível ter a noção disso. Em não havendo temperança
para diligenciar ângulos capazes, o melhor método é deixar o derradeiro dia do
ano entregue à desmemória. Assim como assim, se a noite que habilita um novo
ano for ungida pelo álcool, não se concebe lúcida métrica dos acontecimentos
acantonados no ano civil. Não interessa: nem evocar as proezas, nem as lágrimas
larvares sobre assuntos que mereciam arrependimento ou contrição, caso ambos não
fossem inúteis.
Ou, talvez, o balanço esteja relacionado com o rombo que
a presciência leva quando escolhemos o último dia do calendário para introspeções,
elas próprias irrelevantes. Outra vez a bebida à colação: quem pode ter a
pretensão de arranjar lisas leituras dos pessoais acontecimentos se o raciocínio
está alterado? Há, contudo, quem jure que só consegue lucidez se a mesma vier
da evaporação do álcool contido no copo por onde se bebe. (Uma vez ouvi, na
mesa do lado do restaurante, um patusco certificar que o cunhado, motorista de
camiões TIR, só desempenhava capazmente a função depois de beber uma garrafa de
vinho tinto ao almoço.)
Se são importantes os balanços que dão corpo a uma
necessária peregrinação interior – necessidade sobre a qual tenho dúvidas não
existenciais –, a pior altura é o derradeiro dia do calendário. Porque temos
pressa de virar a página e encontrar as rédeas do ano que se lhe segue. Ou por
não termos essa pressa. No primeiro caso, não temos distanciamento para uma
catarse objetiva pela pressa em ver atirado para trás das costas o ano que se
esgota. No segundo caso, se quisermos celebrar um ano cheio de proezas, como não
há memória em anos anteriores, também somos tomados de assalto pela tirania do
tempo: querendo adiar a meta do ano que finda, porventura temendo que o ano nascente
seja a ponta solta de uma trajetória descendente.
O dia número trezentos e sessenta e cinco é apenas o que
antecede o que seria o trigésimo sexagésimo sexto, não mandassem as convenções
que mandam arquivar o tempo em compartimentos estanques.
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