29.12.15

O ministro sem pasta

St. Vincent, “Cruel”, in https://www.youtube.com/watch?v=Itt0rALeHE8&list=PLLMMrCOYukXNEpgvGgVOLjTDhsivgQs_N
Os senadores merecem homenagem. E se um senador tardou na sinecura, peregrinando demoradamente num estatuto simbólico, agora que os seus tomaram as rédeas do poder mandavam os cânones (e a respeitabilidade inerente ao estatuto) conferir pomposa deferência ao senador.
Só que não havia pasta para o senador. Outras clientelas tiveram de ser satisfeitas e outras pastas convocavam peritos para a função respetiva. Como o senador era daquelas personalidades versáteis, com conhecimentos gerais sobre tudo e mais alguma coisa sem, contudo, ser um especialista em coisa alguma, tornava-se árdua incumbência cerzir o puzzle do gabinete por causa da sinecura a atribuir ao senador. Um conselheiro, uma daquelas personagens cinzentas que espigam na penumbra, tirou coelho da cartola: ao senador, atribuir-se-ia a pasta do ministro sem pasta. Um ministério honorífico, um doutoramento honoris causa do senador, para coroar a sua extensa carreira. O senador passava a ser o ministro sem pasta.
Tomou posse. Como ministro sem pasta, era o único que não teve de filtrar influências e gerir sensibilidades na escolha dos secretários de Estado. Só teve de escolher o chefe de gabinete e o motorista, que não havia préstimo de semear no caminho de neófito ministro tamanha empreitada que, vem nos manuais, serve para arregimentar as primeiras inimizades entre os correligionários (sobretudo entre os que calhou em sorte – ou em sua falta – serem marginalizados das escolhas).
O ministro sem pasta era um mestre de cerimónias. Palmilhava o país, de inauguração em inauguração, sobretudo quando o seu superior hierárquico estava ocupado noutras incumbências. Redigia e lia discursos que faziam honra a efemérides – e, dizia-se à boca pequena, também redigia os mais importantes discursos do primeiro-ministro, que este tinha poucos dotes de oratória e ficava a dever à proficiência na escrita. Mas o ministro sem pasta não demorou a ficar taciturno. Nas reuniões do Conselho, era testemunha passiva das conversas dos seus colegas, como se queixavam das agendas exaustivas que não deixavam tempo sequer para umas horas decentes de sono. Os outros ministros legislavam com abundância, ou não estivesse o governo comprometido com a crença ideológica na engenharia social. Mas ele quase não tinha agenda. E não legislava, pois era um ministro sem pasta.
Deprimido, e a conselho do psiquiatra (amigo de outros combates), o ministro sem pasta abdicou da pasta sem pasta. Ainda tentou convencer o primeiro entre os ministros a testamentar competências que fossem a caução para a legiferação. Em vão. Zangado com o primeiro-ministro, foi-se embora. Escrever as memórias políticas. Se houvesse quem as quisesse ler. Para não sofrer outra deceção, deixou instruções precisas: as memórias só seriam publicadas depois de a morte o levar.

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