Low, "Lies", in https://www.youtube.com/watch?v=1kU6vFiXSAI
As mãos assombrosas do homem calado iam à terra e dela
se soerguiam entretecidas na terra húmida. O homem não se intimidava com o
negrume que tomava conta das mãos. Depois, num ato de prestidigitação, sacudia
a terra das mãos e delas começavam a pender flores. Flores variadas, numa
constelação de cores a fazer lembrar a miríade que há num arco-íris, saídas dos
dedos como se fossem extensão dos poros enrugados.
O homem, calado que era, guardava o segredo só para si. Tinha
medo que o internassem num hospício por posse de dons sobrenaturais, ou que o
internassem num laboratório onde se fazem experiências de genética. E tinha
medo da fama. Às vezes, ocorria-lhe que os fantásticos dotes de fazedor de
flores podiam reverter em generosos benefícios materiais para a sua pessoa. Não
se deslumbrava com a hipótese. Sabia que a existência quase monástica que
levava trazia mais compensações. Preferia continuar a inventar flores com o
suor das mãos misturado com o húmus residual nas terras fertilizadas.
Guardava um pecúlio para oferecer ao fim do dia às
senhoras do escritório. O homem era calado, mas galanteador. Em tendo contas a
ajustar com a beleza (o espelho próprio e um módico de lucidez ajudavam à ilação),
o homem tímido sabia que não era conquistador nato. E, todavia, as mulheres
perdiam-se de encantos por ele por causa das flores que eram diferentes a cada
dia que passava, enamoravam-se pela aura de mistério que o homem calado e sozinho
deixava atrás de si, fantasiavam com as mãos grossas e enrugadas que prometiam
abraços demorados e fortes (e outros prazeres inconfessáveis mobilizados pela
variável fértil imaginação das senhoras).
Um dia, uma pretendente quis espreitá-lo em plena
jornada, no lugar recôndito onde passava o dia. Ficou boquiaberta ao ver como
as mãos do homem coreografavam o nascimento de flores, brotando em jatos à
medida que volteios encenados das mãos convocavam a partitura floral. A mulher esboçou
uma aproximação sem que o homem contasse. Depressa percebeu que se ele não
tinha contado o segredo é porque de um segredo se tratava. E os segredos
respeitam-se, não se partilham – rematou nos seus pensamentos imediatos. Foi a única
vez que o homem quase foi apanhado a meio da função de fazedor de flores.
Um dia, muitos anos depois, o homem calado recebeu uma
carta de uma mulher desconhecida. Ao ler a carta percebeu quem era – a mulher
avivou-lhe a memória. Na carta, a mulher contava que estava doente, em estado
terminal. E que queria que soubesse que ela fora testemunha do segredo só dele.
Que nunca contara a ninguém. E que a perdoasse por naquela hora, em véspera de óbito,
tivesse sentido a necessidade que ele soubesse que não era só ele que se sabia
fazedor de flores.
O homem não se apoquentou. Confiou na mulher que lhe
escrevera do leito decadente. Assim como assim, ele até perdera as capacidades
de fazedor de flores. Que se diluíram com o envelhecimento. Já não tinha nada a
perder.
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