4.12.15

O direito ao disparate, sob o alto patrocínio da congregação das santidades

Gil Scott-Heron, “Me and the Devil”, in https://www.youtube.com/watch?v=OET8SVAGELA
Ingrato o desiderato de esquadrinhar as frases dos outros, as ditas e as escritas, em demanda de um asnear que apouca o autor das ditas. Quem nunca teve a tentação de ser fiel depositário do disparate alheio, que levante o dedo (e adivinha-se que poucos poderão fazê-lo). O mal não está no asnear dos outros, que é um direito que lhes assiste, seja por pergaminhos apedeutas, seja pelas terríveis distrações que são ardis. O mal é que, entre a lupa bem afinada que espulga disparates dos outros, talvez nos distraímos dos nossos próprios passos em falso.
Podemos dizer hoje algo que desmente o que foi dito antes. Podemos mudar de ideias, que é função que só diz respeito a quem decidiu mudar o diapasão por onde se orienta. Em não se tratando de uma mudança de ideias, a contradição pode ser denunciada por outros. E ficamos expostos ao mesmo ridículo que deitamos aos outros quando é a vez de eles escorregarem para a distração que nos constrangeu agora. Ou pode acontecer que as palavras escritas tenham ângulos escondidos, ângulos a que nós, enquanto autores delas, não conseguimos tirar a medida. E esses ângulos são a prova de que asneámos.
Há quem prossiga a existência sitiado pelo pânico de não cair no disparate. Medem as palavras com a precisão de um relógio atómico. Ficam irados se descobrem que foram vítimas do alçapão do despautério, pondo-se a jeito do riso sarcástico dos outros. Ou então, muito senhores de si mesmos, negam que disseram o que disseram, ou desdobram-se em complexa hermenêutica das palavras por si ditas ou escritas. Ou apenas se refugiam na sobranceria de não admitirem, quais catedráticos que adejam sobre os comuns dos mortais, reparos de quem quer que seja.
Nada disso é preciso. Não temos de nos levar a sério. Esse é o segredo. Chega a humildade das fraquezas humanas, esses seres tão distantes da perfeição, para darmos o flanco quando tiramos os pessoais deslizes e dislates do baú das circunstâncias. Asneamos. Como todos asneiam. O que tem uma certa dimensão metafísica: para os que acreditam em divindades que nos orquestram, se um disparate passa uma rasteira, é porque a congregação das santidades assim decidiu. Não vem daí grande mal ao mundo, em geral, a ao tutor de um disparate, em especial.

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