Gil Scott-Heron, “Me and
the Devil”, in https://www.youtube.com/watch?v=OET8SVAGELA
Ingrato o desiderato de esquadrinhar as frases dos
outros, as ditas e as escritas, em demanda de um asnear que apouca o autor das
ditas. Quem nunca teve a tentação de ser fiel depositário do disparate alheio,
que levante o dedo (e adivinha-se que poucos poderão fazê-lo). O mal não está
no asnear dos outros, que é um direito que lhes assiste, seja por pergaminhos apedeutas,
seja pelas terríveis distrações que são ardis. O mal é que, entre a lupa bem
afinada que espulga disparates dos outros, talvez nos distraímos dos nossos próprios
passos em falso.
Podemos dizer hoje algo que desmente o que foi dito antes.
Podemos mudar de ideias, que é função que só diz respeito a quem decidiu mudar
o diapasão por onde se orienta. Em não se tratando de uma mudança de ideias, a
contradição pode ser denunciada por outros. E ficamos expostos ao mesmo ridículo
que deitamos aos outros quando é a vez de eles escorregarem para a distração
que nos constrangeu agora. Ou pode acontecer que as palavras escritas tenham ângulos
escondidos, ângulos a que nós, enquanto autores delas, não conseguimos tirar a
medida. E esses ângulos são a prova de que asneámos.
Há quem prossiga a existência sitiado pelo pânico de não
cair no disparate. Medem as palavras com a precisão de um relógio atómico. Ficam
irados se descobrem que foram vítimas do alçapão do despautério, pondo-se a
jeito do riso sarcástico dos outros. Ou então, muito senhores de si mesmos,
negam que disseram o que disseram, ou desdobram-se em complexa hermenêutica das
palavras por si ditas ou escritas. Ou apenas se refugiam na sobranceria de não
admitirem, quais catedráticos que adejam sobre os comuns dos mortais, reparos
de quem quer que seja.
Nada disso é preciso. Não temos de nos levar a sério. Esse
é o segredo. Chega a humildade das fraquezas humanas, esses seres tão distantes
da perfeição, para darmos o flanco quando tiramos os pessoais deslizes e
dislates do baú das circunstâncias. Asneamos. Como todos asneiam. O que tem uma
certa dimensão metafísica: para os que acreditam em divindades que nos
orquestram, se um disparate passa uma rasteira, é porque a congregação das
santidades assim decidiu. Não vem daí grande mal ao mundo, em geral, a ao tutor
de um disparate, em especial.
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