Fall, “Dog Is
Life/Jerusalem”
O mendigo sentado no chão à espera da comiseração de
quem passa. Ao seu lado, um cão. O homem está em piores condições. Os seus
andrajos contrastam com o pelo bem tratado do cão. O homem está preso a uma
magreza que não se entende se é de carência de mantimentos ou de doença. O cão
exibe um lombo bem nutrido. O mendigo mostra um olhar triste, um olhar que
desmaia no firmamento, algures. O cão ostenta pose garbosa por estar ao lado do
mendigo. Contrasta na felicidade com o mendigo que o acoitou e alimenta. O
homem afaga a cabeça do cão. O seu rosto transfigura-se, devolvida uma centelha
de alegria ao acariciar o cão.
A cumplicidade entre os dois não me deixa indiferente. Porventura
o cão foi adotado pelo mendigo, que mostrou a generosidade com que não pode
contar se estiver à espera dos seus semelhantes. Ou, num laivo de realismo,
dir-se-ia que foi apenas um ato de oportunismo do mendigo, ao acolher o cão
abandonado para o ter como companhia. Para ter uma companhia. Para sentir algum
calor nas noites de invernia, quando o cão se aninha entre as suas pernas nos
interstícios das noites ao relento. Não interessa a exegese do quadro diante
dos meus olhos. A imagem que convém, em sintonia com os sentidos despertados: o
ato de um homem sozinho, de um homem porventura consumido na desesperança, que
deu a mão a um cão sem casa e passaram os dois a ser felizes sem-abrigo.
De repente, vem à lembrança um filme visto em criança. (Foi
há tempo de mais para guardar detalhes do nome e do realizador do filme.) Há
uma cena em que alguém, bem-apessoado, se aproxima de um mendigo que trata de
um cão. Desafia o homem a desferir um pontapé no cão, contra a paga de uma
esmola choruda e de uma refeição no restaurante ao lado. O homem tergiversou. Olhou
para o cão, enquanto o cão desviava, com maior carinho, o olhar na direção do
seu. O homem que desafiou o mendigo faz um último aviso: era pegar ou largar. O
pobre do mendigo, acometido por um instinto dir-se-ia humano (na exata medida
das necessidades da mendicidade), dá um pontapé no cão. O animal desata a
correr dali para fora, ganindo em desespero. Na pungência da cena (tão marcante
que subiu às memórias quando esbarrei no mendigo acompanhado do cão), fervilhou
ingénua raiva ao supor que alguém podia medrar em tamanha maldade para destruir
a amizade entre o pobre homem e o cão. O cão gania de desespero mais pela traição
da amizade do que pela dor do pontapé. O filme não mostrava mais nada. Ficou por
conta do espetador deitar contas à imaginação, para determinar se o homem
conseguiu recuperar o cão (e a sua confiança), ou se este, dececionado com a
vileza humana, fugiu para longe do olhar do mendigo.
Ao menos, diante dos meus olhos, sobrava o afeto entre o
mendigo e o seu ternurento cão. Eu sei que é lirismo, mas oxalá houvesse, entre
a gente com cepa humana, um módico deste afeto. Ao lirismo dou conta da ilação:
pobres são os que se julgam ricos em matéria, mas desconhecem os rudimentos dos
afetos.
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