23.2.16

A arte do esquecimento

Julia Holter, “Silhouette”, in https://www.youtube.com/watch?v=m8_ZWlOKsUQ
Há o esquecimento voluntário. Como se fosse preciso lavar a alma inteira em águas álgidas e vir à superfície de alma nova. O esquecimento que apetece. Propositado, só pode ser um esquecimento com lastro em motivações. E quem nunca foi tentado por aluvião que passa por onde esteve o passado e o branqueia? Como se esse hesterno nunca tivesse feito parte dos pergaminhos do passado. O esquecimento em tais preparos convoca a astúcia de redenominar o que estava arquivado no parapeito das memórias. A vontade congemina-se para uma rendição em forma de esquecimento. Nesses preparos, frui um esquecimento que desagua num palco faz-de-conta. Há quem se dê bem. E há outros que não suportam as dores que uma consciência mal-amanhada esgravata desde o fundo do ser.
Há o esquecimento involuntário. A distração metódica. O alheamento das coisas, por tantas serem as que exigem atenção que a atenção não consegue ditar olho em todas elas. É o esquecimento seletivo. Montada a memória em camadas, umas por cima das outras, por vezes interpenetrando-se; em não havendo espaço para albergar a nitidez de todas as memórias hasteadas, soerguem-se as que jorram no critério da seleção. Não comandamos esses mecanismos. Ao contrário da vontade que julgamos domar. Entre as várias camadas, adelgaçam-se as que bolçam memórias mais antigas, ou memórias que a alma irrefreável aconselha a selecionar para o escaninho das desmemórias.
Mas, depois, alguém trata de avivar com cal algumas dessas memórias. Podemos tergiversar no recanto das rememorações, demorando a tirar as medidas à provocação que vem de fora. Ou podemos entrar em estado de negação, jurando a pés juntos que não passámos pelos acontecimentos resgatados de outrora. Ou ainda podemos trocar os rudimentos da desmemória involuntária pelo esquecimento intencional, entrando no engodo de um jogo de sombras. E ajuramentar que não sabemos do que se trata, quando por dentro contamos às veias que reconhecemos o palco em que nos colocam, sem que antes da convocação da memória as artérias reconhecessem que tal sangue já fluiu nelas.
Há no esquecimento uma certa arte. Ardilosa ou não, mas arte.

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