PJ Harvey, “The Wheel”, in https://www.youtube.com/watch?v=7ReW0jJkag8
O que dirias se te
aparecesse o Camões, vestindo impecável farpela, executando uma dívida de que
sabes não ser titular? Porventura, ficarias com a impressão que estavas imerso
num sonho. Camões já morreu há muito tempo e a última vez que ouviste falar a ciência
havia a imperativa certeza que os mortos não regressam dos túmulos. Talvez não
fosse o Camões, mas uma personagem que, dirias, ser seu sósia.
Resolvida a primeira
equação, a que te retirava de um possível sonho surrealista, tinhas outro
dilema que precisava de solução. A dívida exigida não era tua – ou, pelo menos,
não a reconhecias. Dirimido o que podia ser um sonho, tropeçavas no que tinha
potencial de pesadelo. Com certeza que o apessoado cobrador de fraque teria de
exibir prova da dívida e de seres seu titular. Esperavas por documentos, mas
tinhas medo que eles te fossem mostrados. Ele há tanta coisa estranha,
maquinações, solipsismos, conspirações que arrematam inocentes para um lodo
inesperado, que não podias excluir alguma inquietação.
Continuavas com as
interrogações que atiravam lume para a perplexidade: e se te fossem mostrados
documentos a provar que tinhas contraído a dívida, seria possível não te
lembrares dela, como se fosse uma anestesia de parte do passado? Para piorar as
coisas, o cobrador de fraque falava como o Camões. Rebuscado. Um idioma atávico.
Como se não fossem suficientes a barba hirsuta e a venda no olho esquerdo, a
juntar à fatiota impecável mas que ninguém usa nos dias que correm, o cobrador
de fraque até falava em rima enquanto anunciava, impassível, a origem da dívida
e o montante correspondente.
Mas depois alguma
lucidez veio ao regaço, pondo ordem no tabuleiro onde tudo se jogava. Camões
não era, de uma vez por todas: se dúvidas houvesse sobre uma não anunciada
(pela ciência) possibilidade de ressuscitação dos finados, tiraste as teimas
porque Camões tinha o direito como olho cego. Depois, a cobrança de dívida acontecia
num inóspito vale gelado, com um glaciar em pano de fundo. E estavas nu, como
se fosse possível a um mortal aguentar os pés nus enfiados no gelo e as
temperaturas negativas que se faziam sentir.
De facto, sentias os
pés gelados. De repente, um safanão foi a desejada alvorada que te subtraiu a
um, de facto, pesadelo. O cão também estava a ter um pesadelo e estremeceu em
cima das tuas pernas. Foi quando notaste que o cão tinha roubado o bife que deixaras
a descongelar, repousando o naco de carne, ainda congelada, encostado aos teus
pés.
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