2.2.16

As singularidades do poeta

Underworld, “I Exhale”, in https://www.youtube.com/watch?v=4izZYfo58-E
Dizem que os poetas têm sensibilidade diferente. Dizem que são sábios na prestidigitação das palavras. Que obtêm, em forma de estrofe, o sortilégio da musicalidade das palavras, ou a alquimia do poema perfeito. Dizem que andam às avessas do mundo. Que caldeiam, com olhos de lince, o palco do mundo. Dizem: que os poetas são intérpretes dos incomensuráveis encargos da existência, traduzindo os sentimentos comuns em texto debruado a ouro.
O poeta, porém, anda no meio de toda a gente. É um, como toda a gente. Come e dorme. Tem angústias. Alegrias (suponho, até os poetas que se distinguiram na poesia dos pesares próprios). Tem as mesmas necessidades fisiológicas. Adoece. Bebe álcool. Tem vícios privados (ou publicamente assumidos, no caso de poetas peritos no desassombro). Tem dificuldades em manifestar estados de alma, quando os mesmos pedem que se solte a palavra falada. Tem preferências estéticas. Decerto, escorrega para as coisas mundanas. Tem frio. Fuma. Vai à praia. Viaja – e, talvez, recolha matéria-prima abundante através da mundividência das viagens. Cansa-se. Tem amigos (ou não). Ama, ou sofre desamores (ou as duas circunstâncias, em momentos espaçados).
E tudo, tudo, serve para tirar as medidas a um poema. Desde as coisas mundanas, aos sentimentos maiores. Pelos olhos que são dele. Ou por interposta pessoa, escrevendo na terceira pessoa do singular, ou na primeira pessoa do plural. No poeta fermenta um sangue interior que é diferente. Dir-se-á: um sangue que alimenta a sensibilidade diferente, a sensibilidade em que medra a poesia toda.
Os pés, é como se andassem nus sobre o chão, para melhor se enraizarem nas coisas, nas palavras, nos sentidos que servem de tradução para a poesia e que pulsam nos elementos. No sono, caução dos sonhos diversos, bebe o poeta a inspiração dos poemas que saem do punho. Às vezes, um exercício dilacerante. O poema parece arrancado a ferros da carne, derrama sangue que incendeia o poema. De outras vezes, o poema é uma planície de flores campestres, uma constelação de cores, uma orgia de aromas, o poeta embebido numa profusão de sentidos criativos. E há, também, os poemas vindos do nada, de pequenos nadas que se transfiguram em poemas ora singelos, ora grandiosos.
A carne do poeta é o carvão do poema. As mãos nunca cansadas emolduram as estrofes com as palavras escolhidas a dedo, ou apenas com as que soerguem ditadas pela pulsão semântica. A criação em estado puro. Uma gramática singular. A singularidade da poesia, mesmo quando não é original.

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