3.2.16

Meditações erráticas

Cass McCombs, “The Same Thing”, in https://www.youtube.com/watch?v=QUfLXvH4fN4
Não parava de dizer:
- Vai até à pagina cinquenta e seis. Vai até à pagina cinquenta e seis.
Antes de responder ao desafio (pois soava a desafio), ele queria saber por que haveria de saltar as primeiras cinquenta e cinco páginas do livro para deter a atenção numa frase situada na página cinquenta e seis. Contrapôs que é refém da metódica, e que a metódica não deixa saltar páginas de um livro – era como se entrasse a meio de uma peça de teatro, intrépido rebelde a boicotar a peça; mas, no fim de contas, só ele ficava a perder pela ininteligibilidade da peça. E ela insistia:
- Só digo isto: vai à página cinquenta e seis. Terceiro parágrafo. Toma o meu livro.
Alguma irritação começava a incendiar as veias. Ele não gostava que lhe dessem ordens. E gostava, ainda menos, que lhe dissessem como haveria de ler um livro, mais a mais porque, em estando refém da metódica, não considerava a hipótese de avançar as primeiras cinquenta e cinco páginas mais os dois primeiros parágrafos da página cinquenta e seis.
- As coisas têm a sua ordem – retorquiu, dando a entender que não admitia a hipótese levantada. E ela, em ar de desafio (de desafio às empedernidas convenções que o sitiavam), provocou-o:
- Não és capaz de desalinhar dos métodos a que te habituaste?
- As minhas manias, que tens a ver com elas?
- Põe-te à prova. Avança até à página cinquenta e seis. Não vais ter uma deceção.
- Pode ser que também questione as tuas convenções. Pois não me vais convencer que não tens as tuas...
- ... és tu que estás em causa. Esquece que estou aqui a crepitar este desafio. Imagina apenas o desafio, desapossado do seu remetente. Foca-te nele.
- Ah! Agora estamos em jogos...
- ...não desvies a conversa. Não te desvies do desafio.
Cansado dos jogos florais sem sentido, e porque não queria alongar a contenda, abriu o livro na página cinquenta e seis. A página estava em branco. Não tinha parágrafos. Fazia a divisão entre o capítulo dois e o capítulo três. Perturbado, talvez a achar que ela estava a escarnecer, perguntou:
- Isto tem um significado que me escapa. Ou é outra coisa qualquer?
- Eu disse página cinquenta e seis como podia ter dito página cento e vinte e quatro.
- Não tenho paciência para a tua troça...
- ... não é nada disso. Era apenas um jogo, só para os dois lermos a frase na página cinquenta e seis. Para a tomarmos como mote e depois levarmos a conversa por onde a teia se entretecesse.
- Mas o jogo terminou. A página está em branco.
- E não consegues retirar daí um significado? Ou uma página em branco apenas sela a inexistência de algo?
- Não. Uma página em branco pode ser o sinal de um silêncio. Também podemos comunicar através de silêncios.
- Como o acabas de demonstrar.

Sem comentários: