1.2.16

Há dias assim

Air, “You Make it Easy”, in https://www.youtube.com/watch?v=CmsfIFzaCUY    
I
Sombrios. E, todavia, repletos de uma luz estranha, uma luz que incendeia o pensamento. Ninguém dá nada por estes dias. E, todavia, reproduzem a mais elevada intensidade. Sem se saber porquê. Apenas porque sim. Uma predisposição que derrota os embaciamentos que se propõem em cores cinzentas, para arrebatar a luminosidade tímida, mas bela, heurística, que se depõe diante do olhar.
II
Devastadores. Pontos anotados no calendário por uma dimensão dramática. Dias pungentes, que enfeitiçam as cores e as levam a serem plúmbeas. Tempo coalhado pelas lágrimas que lavam as consumições interiores. Por um tempo inglório, talvez, em que a mágoa se abraça ao peito ferido.
III
Arrebatadores. O tempero doce sobre as manhãs salgadas. Uma trave-mestra do pensamento que se desmorona – e o pensamento convocado a novas costuras. Ou apenas um gesto de protesto contra os gurus da positividade da vida, aqueles seres irritantemente sempre bem-dispostos, que transpiram felicidade sem que ninguém tenha pedido para aspergirem os salpicos dessa felicidade para fora das suas soberbas pessoas. Dias apenas para denunciar logros, porque não há maneira de sermos todos invadidos pela felicidade perene, apesar das doutas lições de tais gurus. Dias arrebatadores: por haver lucidez para temperar as cores que acamam os dias que nos ungem, ardilosamente transformando complexidades em coisas simples.
IV
Problemáticos. Na penumbra, entre dois segmentos de luz, sem que se saiba o que traz proveito. Sobram interrogações. Sobrepõem-se umas às outras, ao ritmo das hesitações que tiram as mordaças ao corpo. Problemáticos os dias que destroem imperativos categóricos, altares morais, certezas contundentes, conclusões iniludíveis. As dúvidas sistemáticas renovam a paisagem oferecida ao pensamento. São o seu nutriente maior.
V
Repetíveis. Indistinguíveis. Iguais a tantos outros. Não pertencem à moldura das memórias avivadas. A maioria do tempo. Não perdem estes dias importância por serem deste calibre. São o húmus da vivência, o viveiro de representações que configuram uma identidade. Aqueles dias que nem se dá por eles. E, todavia, dias assim há em que, ao deitar, um sono sereno é o prémio merecido.

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