9.2.16

Do afeto

Deerhunter, “Back to the Middle”, in https://www.youtube.com/watch?v=k9MsFaFrrps
Por que precisamos de afeto? É uma exigência dos sentidos. Uma prova de vida, o portal por onde temos de passar para vingarmos como humanos. Damos e recebemos afeto. E assim o afeto se equaciona como sinalagma. Uma troca, sem ordem de fatores – pois não se pode esperar que o afeto de ontem tenha fatura a debitar no afeto de hoje, que é, ao mesmo tempo, a promissória do afeto de amanhã. Nem se pode esperar que, no deve e haver entre afetos (o dado e o recebido), o saldo seja nulo.
O afeto exige ato espontâneo. Pode-se traduzir em pequenos atos ou em atos memoráveis, em singelas palavras ou em palavras que ganham moldura para a posteridade. Pode haver afeto mesmo quando não damos por ele. Num simples olhar, na condição de o olhar afetuoso não se confundir com comiseração (pois a pena é a negação do afeto). O afeto pode implicar contacto entre dois corpos: um breve afago, um beijo, um abraço demorado, um aperto de mão, a perna que se entrecruza noutra, o sexo. Ou pode ser a exteriorização de palavras, ou de atos distantes (uma carta, um bouquet de flores, uma mensagem de telemóvel, uma mensagem escrita no orvalho depositado numa janela).
Não há ordem nos afetos, nem prioridades entre as categorias em que se desmultiplicam as manifestações de afeto. Tudo depende do momento. Da vontade que emerge. Da circunstância. E das pessoas que intuem afetos, do seu destinatário e de quem parte o afeto. Os afetos fluem com as pessoas, e as pessoas (é lugar-comum, mas aqui vai na mesma) são o império da subjetividade, expressão da profunda heterogeneidade que dá cunho à riqueza da espécie. Se metermos pelo meio a diversidade das culturas, a forma diferente como pessoas de diferentes lugares entendem e reagem aos afetos, a empreitada da objetividade do afeto é uma impossibilidade.
Há lugares onde os afetos entre pessoas pouco conhecidas ou estranhas se resumem a formas que não contemplam qualquer contacto físico. Os povos latinos são mais dados ao contacto físico – é só ver como nos programas de variedades os convidados são cumprimentados com recurso ao contacto físico (beijo ou aperto de mão), possibilidade excluída em países mais a norte, onde há uma reserva mental em passar o afeto mínimo (visível no cumprimento a alguém) ao domínio físico. As pessoas, mesmo com algum grau de conhecimento, não se beijam nem apertam as mãos. E mostram incómodo quando um latino, habituado a estes procedimentos afetuosos, tenciona exportar os seus hábitos.
Por tudo isto, é inútil ensinar os afetos. E é impossível uma teoria homogénea sobre os afetos. É daqueles domínios onde a prática suplanta a hipótese de teorização. Na certeza de a demissão dos afetos retirar essência e substância às pessoas.

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