Savages, “Adore”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y7ZpPsaMNMM
Podia ser só um pesadelo. Olhava de frente e o espelho não
correspondia com uma imagem do rosto. O espelho não tinha vidro, mas quem o via
de fora era levado a pensar que o vidro estava no seu lugar. Constava que as
pessoas se demoravam em frente ao espelho. Mesmo sabendo que por ele não
alcançavam imagem devolvida, à falta do vidro que seria a caução do espelho. Parecia
que as pessoas persistiam numa anestesia coletiva.
Um dia, um forasteiro ficou perplexo ao notar que o
espelho não dava notícias do seu rosto. Sendo testemunha de pessoas tomadas
pelo enlevo enquanto esperavam à frente do espelho, quis perguntar o que as
levava a parar à frente de um espelho que, por falta de vidro, não tinha
serventia. A primeira pessoa, um ancião arqueado sobre a bengala, não
respondeu. Talvez fosse surdo. A segunda, uma mulher jovem e ruiva, ficou
impassível, como se ninguém estivesse a dirigir uma pergunta. A terceira, um
senhor de meia-idade todo apessoado, fingiu que tinha de atender o telemóvel. À
quarta pessoa, obteve um esclarecimento:
- Quando este espelho
foi posto na praça, já não tinha vidro.
- Diga-me: que função
tem um espelho desprovido de vidro? As pessoas não olham para um espelho para
se verem reproduzidas nele?
- Isso é se as convenções
forem hasteadas. Nesta cidade, fomos educados a reservar uma parte do tempo
para fugir às convenções. Fazemos isso todos os dias. Um espelho sem vidro é a
antítese das convenções.
- Fazem de conta que vêm
qualquer coisa quando estacionam à frente do espelho?
- É como nas artes:
vemos o que queremos que a imaginação desenhe. Este espelho é um convite a sair
do eu, a soltar as amarras que prendem aos usos.
- Todavia, não notei
que as pessoas fechassem os olhos quando estão de frente para o espelho.
- É porque está
hipotecado a uma convenção: presume que os rudimentos da imaginação exigem que
os olhos se fechem, como se fosse condição para a imaginação levantar voo e aportar
em lugares longínquos. Ninguém fecha os olhos à frente do espelho. Não é
preciso. As amarras da imaginação podem ser franqueadas sem erguer uma cortina
sobre o olhar.
- Se as pessoas estão
habituadas a este exercício, por mais que me diga que desencrava os grilhos das
convenções, ele acaba por ser um costume.
- Mas é um costume que
se insurge contra as convenções. Note bem: nós temos as nossas convenções. Por mais
irreverente que alguém seja, admite um módico de usos. Servem para emprestar
cimento à forma como nos relacionamos. Só que há um momento diário em que
extravasamos das convenções. À frente do espelho sem vidro. Resgatamos
fragmentos da autonomia.
- Portanto, funciona
como uma libertação?
- Sobretudo, de
libertação do eu em que habitamos.
- Têm vocação para alter
egos?
- A praça onde está o
espelho sem vidro é a praça Fernando Pessoa. Nas suas extremidades, encontra
estátuas representando os heterónimos.
- Não leve a mal a
minha derradeira pergunta: não padecem de esquizofrenia?
- Não. Somos maiores do
que o eu em que habitamos. Por isso não conseguimos discernir rostos à frente
do espelho. É também por isso que o espelho foi despojado do vidro. Se calhar
percebe por que temos tão pouco crime e quase não há suicídios.
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