13.4.16

Crítico musical

Nick Cave & the Bad Seeds ft. P. J. Harvey, “Henry Lee”, in https://www.youtube.com/watch?v=QzmMB8dTwGs
Um desejo. Fantasioso: regressar àquela idade em que fazemos projetos para a idade adulta e respondemos à questão que, militantemente, oprime o pensamento: “o que queres ser quando fores grande?” E agora, que “grande” já sou, apetecia regressar lá atrás só para responder à pergunta sacramental que se abate sobre quem faz planos para o depois das responsabilidades. Só para à pergunta retorquir “quero ser crítico musical”.
A música faz parte das coisas que constituem matéria de adoração. E porque, julgo, não deve haver maior gratificação do que trabalhar numa área que, para os demais, é objeto de consumo. Quem me dera levar para casa resmas de discos. De artistas conhecidos e daqueles que demandam uma descoberta. Oxalá pudesse fazer do tempo de trabalho escuta de discos atrás de discos, tirando notas, descobrindo revelações, rejeitando artistas, confirmando outros, descobrindo que anteriores revelações esgotaram o manancial de inspiração e se tornaram banais, redescobrindo outros que tinham caído no limbo. E ser convidado a assistir a concertos e deles fazer recensão crítica.
Oxalá pudesse ser remunerado por algo que hoje é um hobby. Deixaria de comprar música e bilhetes para concertos. Deixaria de escorregar para a pirataria – e deixaria de levar com gente moralista que me pespega correspondentes lições pela pirataria em que incorro. Deixaria de pagar pela música que ouço; passaria a ser pago para o fazer. Mesmo que o desejo em forma de fantasia fosse uma reviravolta profissional.
Dirão que não demorava a julgar fastidiosa a empreitada. Que ouvir incessantemente música com o propósito de redigir recensões acabaria por instalar o cansaço da função. Que o hobby de hoje seria obrigação amanhã, destituindo o prazer que hoje se encerra na música de que sou consumidor. Outros diriam que a reviravolta profissional seria apenas um ato de narcisismo, já que o produto da função (as recensões críticas) teria o condão de formatar as preferências dos consumidores. Eu digo que nem uma coisa, nem a outra (mas, sobretudo, a segunda: pouco me importo com audiências).
Correndo o risco de ver os ouvidos e o pensamento assaltado por alguma bosta musical, não hesitava. Só para cumprir um desejo que nunca o foi quando projetava “ser grande”. E que, com esta idade, decidi repristinar com efeitos retroativos. Nem que seja apenas no onírico.

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