28.4.16

Floresta (11)

Massive Attack, “Live With Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=AIIovpUQiro
Adormeceu. Sem sequer tomar banho, como prometera ao livrar-se da grilheta da floresta. Sem sequer tirar a roupa, decerto imunda depois de tanto tempo na floresta. Adormeceu mal sentiu a cama.
Pelo meio do sono, achou-se outra vez na floresta. Desta vez, não havia nevoeiro a embaciar o arvoredo. O dia soalheiro irradiava uma luminosidade deslumbrante sobre a floresta, emprestava-lhe uma beleza impossível ao visitar a floresta sitiada pelo nevoeiro. O verde das árvores refulgia. Ouvia-se o canto das aves, a música de fundo. Era possível distinguir as várias espécies de árvores que convivem com os arbustos, os cercados, os rochedos e alguma fauna ocasional que espreitava entre duas fragas. A floresta apetecia. Um lugar tão bucólico convidava o corpo a meter-se pelos confins da floresta, sem temer se não o entardecer – e só porque o entardecer interrompia a fruição da floresta. O homem estava extasiado. A páginas tantas, recolheu uma papoila que nascera, por acidente, no meio de um campo de tojo. Teve sempre por companhia pássaros de diversa estirpe.
Em estando montado um palco tão bucólico, o homem nem desconfiou que os pássaros podiam trazer nas asas outras intenções: podia não ser, como ele achava, para lhe fazer companhia na digressão pela floresta; podiam fazer as vezes de espiões, para reportarem a alguém. Foi quando o sobressalto voltou a rebentar à boca de cena. Os pássaros revezavam-se. Ciciavam entre si. Olhavam o homem com alguma intimidação, alguma reprovação. Seriam emissários do vulto que o julgara na véspera? De repente, a floresta deixara de ser um lugar convidativo. E o homem iniciou uma demanda semelhante à da anterior jornada. Tinha de deixar a floresta mal pudesse. A empreitada seria mais fácil desta vez, a julgar pelo caminho que percorrera. Mas os malditos pássaros continuavam a adejar sobre o homem. O medo instalou-se, outra vez. Perturbado, via vultos insinuando-se nas sombras que o sol, entretanto em decaimento, deitava sobre as formas das árvores. Apressou o passo. Os pássaros acompanharam-no.
Ao longe, tomou nota de um vulto feminino. Banhava-se num lago onde eram numerosos os nenúfares. O lago terminava numa cascata que despejava uma torrente de água por um desfiladeiro que tinha o musgo como leito. A mulher era jovem. Estava seminua. Movido pela curiosidade, e sem tento para travar os instintos carnais, por momentos esqueceu-se dos pássaros em forma de ameaça e da possibilidade de ser convocado pelo vulto para novo acerto de contas. Travou o passo acelerado. Não queria assustar a mulher que se comprazia com a água nítida do lago. Aproximou-se, em silêncio. Até os pássaros concluíram o murmúrio constante durante a companhia que fizeram ao homem. Ele nem notou a súbita ausência dos pássaros.
A mulher era curvilínea. Sensual. Ao querer ficar ainda mais junto da mulher, para melhor apreciar as suas formas, calcou um galho senescente. Que crepitou, por estar seco. A mulher agitou-se. Olhou em redor para perceber de onde vinha o ruído e se devia sentir medo. Deparou com o homem ruborizado, o suor escorrendo das frontes e rompendo caminhos aleatórios pelo rosto abaixo. Ele achou que a mulher denotava lascívia pela forma como o olhou. Impressão sua; assustada, e com o coração ainda acelerado, ela não podia mostrar aquilo que ele jugava (ou desejava) que fosse.
Antes que deixasse os instintos carnais baterem asas, o homem recuou. Desconfiou das intenções da mulher. Ali no meio da floresta, sem ninguém por perto, nem sequer com os pássaros a fazerem de testemunhas (como dantes), não podia acreditar que lhe fosse caber em sorte uma mulher lúbrica como a que se banhava no lago. Sem demora, perguntou-lhe:
- Vais-me dizer que também és recriação da minha consciência?
- Como? O que queres dizer com isso?
- Não te faças desentendida. Foste enviada pelo vulto para preparar o novo acerto de contas de que sou devedor.
- Estás louco?
- Vou-me daqui. Não me apanhas na emboscada.
A mulher não teve tempo de esboçar uma reação, atónita com o discurso ininteligível. O homem fugira como se estivesse na presença de um demónio. Talvez intimidado por parte considerável dos delitos que o convocavam a depor no acerto de contas em que o vulto fora julgador. O homem nunca chegou a saber que a mulher não era emissária do vulto, nem estava ali como arremedo de uma armadilha. Perdido no meio do sonho, o homem condenado não teve consciência disto.
Acordou, sobressaltado e com suores frios. Culpou o sonho pela oportunidade não aproveitada. Mas, afinal, escapou ao que ele julgara ser o segundo ato do acerto de contas. Como ainda devia tempo ao sono, voltou a adormecer. Nas suas preces, antes do sono, suplicava que o sono não voltasse a ser locupletado por sonhos inquietantes.

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