19.4.16

Floresta (4)

Mazzy Star, “Fade Into You”, in https://www.youtube.com/watch?v=-uJ61jgFCMM
Noite instalada. Confirmaram-se os receios do homem medroso: a floresta, pela noite, era medonha. Mal conseguia distinguir as silhuetas das árvores. O frio, de mão dada com a humidade, tornava as coisas mais insuportáveis. E havia a possibilidade de o vulto assomar outra vez, com a vantagem – para o vulto – de tudo estar mergulhado numa escuridão empedernida e o vulto não precisar de luzes.
O homem medroso aconchegou-se no outro homem, ainda desmaiado. Fazia-o para se proteger das investidas do vulto; podia ser que o vulto se embaraçasse na presença do outro homem, a crer que o vulto não quisesse cobrar nenhuma fatura ao outro homem. Admitia-o, mas só para dentro de si: o aconchegar do homem desmaiado não era um ato de humanismo. Sussurrou: “maldito egoísmo”. Já em pensamento, corrigiu: “é o egoísmo”.
A noite avançou. O pavor trespassava o homem. Ele tiritava mais pelo medo do que pelo frio húmido da floresta ainda impedida pelo nevoeiro persistente. Tanto era o medo que o sono estava em ausência. Uma insónia prometia-se em companhia da longa noite. O homem medroso não queria ser apanhado pelo vulto em contra falso; se ele viesse – e ainda formulava uma tímida esperança que o vulto se intimidasse com o homem desmaiado –, queria estar preparado para o receber, para com ele lutar, se preciso fosse, apesar de as forças serem desproporcionais.
Como se estivesse na posse de um oráculo, a profecia cumpriu-se: ia a noite adiantada, surgiu o vulto num repente, voando sobre os dois homens numa coreografia hostil. Agora ainda era mais difícil discernir o vulto; as suas formas voláteis confundiam-se com a penumbra e embaciavam-se com o nevoeiro. O vulto investiu três vezes em voos rasantes que punham o pânico em erupção. Depois acalmou as intenções. Adejou sobre os dois homens, como se levitasse sobre eles, a uma distância de segurança. Era como se o vulto admitisse que os homens o podiam atingir, ou como se apenas estivesse a estudar cuidadosamente o seu comportamento (não sabia que hipótese se encaixava na distância de segurança que o vulto estabeleceu entre si e os dois homens).
O vulto ficou inerte durante uns minutos, como se estivesse a observar os dois homens. O homem medroso desfez a íntima esperança que o vulto não quisesse incomodar o homem desmaiado. Sabia que o vulto tinha contas a acertar com ele. Julgava que o vulto poupasse o outro homem ao acerto de contas. A menos que também houvesse contas a acertar com o homem ainda desmaiado. Mas já não interessava especular. O acerto de contas estava a ser preparado. E talvez o vulto, percebendo que o outro homem estava inanimado, tivesse resolvido atalhar caminho para o acerto de contas: inanimado, o outro homem não seria testemunha.
O homem medroso, que mal tinha coragem para levantar os olhos acima da linha do horizonte que se compunha na horizontalidade do olhar, esboçou um olhar uns metros acima desta linha. Mesmo estando paralisado pelo pânico, tinha de tomar sentido nos movimentos do vulto. Tinha de perceber ao que vinha o vulto, embora estivesse certo que era para o acerto de contas. O homem ainda perguntou se não estava por dentro de um pesadelo, apenas. Um pesadelo imenso: a aventura na floresta, o vulto que o sobressaltou, os dois homens perdidos no meio da floresta, a peleja com o outro homem e o desmaio consequente, a noite medonha ao relento na floresta. E a repetição do vulto. Tinha de testar se era um pesadelo. Tinha de perceber se o vulto esperava uma distração para desferir o golpe certeiro, ou se era aconselhável comunicar com o vulto.

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