Mazzy Star, “Fade Into You”,
in https://www.youtube.com/watch?v=-uJ61jgFCMM
Noite instalada.
Confirmaram-se os receios do homem medroso: a floresta, pela noite, era
medonha. Mal conseguia distinguir as silhuetas das árvores. O frio, de mão dada
com a humidade, tornava as coisas mais insuportáveis. E havia a possibilidade
de o vulto assomar outra vez, com a vantagem – para o vulto – de tudo estar
mergulhado numa escuridão empedernida e o vulto não precisar de luzes.
O homem medroso
aconchegou-se no outro homem, ainda desmaiado. Fazia-o para se proteger das
investidas do vulto; podia ser que o vulto se embaraçasse na presença do outro
homem, a crer que o vulto não quisesse cobrar nenhuma fatura ao outro homem.
Admitia-o, mas só para dentro de si: o aconchegar do homem desmaiado não era um
ato de humanismo. Sussurrou: “maldito egoísmo”.
Já em pensamento, corrigiu: “é o egoísmo”.
A noite avançou. O pavor
trespassava o homem. Ele tiritava mais pelo medo do que pelo frio húmido da
floresta ainda impedida pelo nevoeiro persistente. Tanto era o medo que o sono
estava em ausência. Uma insónia prometia-se em companhia da longa noite. O
homem medroso não queria ser apanhado pelo vulto em contra falso; se ele viesse
– e ainda formulava uma tímida esperança que o vulto se intimidasse com o homem
desmaiado –, queria estar preparado para o receber, para com ele lutar, se
preciso fosse, apesar de as forças serem desproporcionais.
Como se estivesse na
posse de um oráculo, a profecia cumpriu-se: ia a noite adiantada, surgiu o vulto
num repente, voando sobre os dois homens numa coreografia hostil. Agora ainda
era mais difícil discernir o vulto; as suas formas voláteis confundiam-se com a
penumbra e embaciavam-se com o nevoeiro. O vulto investiu três vezes em voos
rasantes que punham o pânico em erupção. Depois acalmou as intenções. Adejou
sobre os dois homens, como se levitasse sobre eles, a uma distância de
segurança. Era como se o vulto admitisse que os homens o podiam atingir, ou
como se apenas estivesse a estudar cuidadosamente o seu comportamento (não
sabia que hipótese se encaixava na distância de segurança que o vulto
estabeleceu entre si e os dois homens).
O vulto ficou inerte
durante uns minutos, como se estivesse a observar os dois homens. O homem
medroso desfez a íntima esperança que o vulto não quisesse incomodar o homem
desmaiado. Sabia que o vulto tinha contas a acertar com ele. Julgava que o
vulto poupasse o outro homem ao acerto de contas. A menos que também houvesse
contas a acertar com o homem ainda desmaiado. Mas já não interessava especular.
O acerto de contas estava a ser preparado. E talvez o vulto, percebendo que o
outro homem estava inanimado, tivesse resolvido atalhar caminho para o acerto
de contas: inanimado, o outro homem não seria testemunha.
O homem medroso, que
mal tinha coragem para levantar os olhos acima da linha do horizonte que se
compunha na horizontalidade do olhar, esboçou um olhar uns metros acima desta
linha. Mesmo estando paralisado pelo pânico, tinha de tomar sentido nos
movimentos do vulto. Tinha de perceber ao que vinha o vulto, embora estivesse certo
que era para o acerto de contas. O homem ainda perguntou se não estava por
dentro de um pesadelo, apenas. Um pesadelo imenso: a aventura na floresta, o
vulto que o sobressaltou, os dois homens perdidos no meio da floresta, a peleja
com o outro homem e o desmaio consequente, a noite medonha ao relento na
floresta. E a repetição do vulto. Tinha de testar se era um pesadelo. Tinha de
perceber se o vulto esperava uma distração para desferir o golpe certeiro, ou
se era aconselhável comunicar com o vulto.
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