1.4.16

Ninguém mente

Chvrches, “Lies”, in https://www.youtube.com/watch?v=81RqEnvczV8
Ninguém tem a mentira na ponta da língua. Nem o suficiente travão na língua que impeça a mentira. Somos todos inocentes no restolho da inverdade. E ingénuos, também.
Às vezes, é melhor que o sol tenha uma peneira a ocultá-lo. Pois o sol pode deixar à mostra as verdades pungentes, as que custam a digerir, as que têm difícil convivência. De caminho, é-nos dado a saber, ou pelo menos a desconfiar, que o encobrimento da verdade é matéria pródiga entre os cidadãos (já para não entrar na discussão ontológica acerca da verdade). Em assim sendo, às vezes (também) há quem pergunte se a mentira não é preferível à verdade, pois se toda a gente anda a semear inverdades, atirando-as para cima dos outros, não vem mal ao mundo se o método passar de boca em boca até ficar enraizado como uso adquirido.
A páginas tantas, de tanto os mitómanos acreditarem nas patranhas que pespegam, a fronteira entre a verdade e a mentira perde nitidez. (Outra vez: descontando a possível fluidez da verdade como matéria suscetível de balizamento subjetivo: tudo depende das lentes que decantam os factos que se apresentam ao altar da verdade.) Como proclama o provérbio, de tanto se contar uma mentira ela transforma-se em verdade.
Os hermeneutas da mentira escalpelizam o fenómeno: há mentiras e mentiras. Obedecem a uma ordem de grau – de intensidade e de gravidade, atestadas as suas consequências. As pequenas mentiras, argumentam, são do foro da inocência; delas não vem mal ao mundo nem à consciência de quem as pratica. Há as mentiras de média gravidade, as que adulteram o cenário onde outras pessoas se movem, as que podem incomodar o sono do mitómano seu fautor. E há as grandes mentiras, as que têm equivalência a grandes abalos telúricos, como se reivindicassem os métodos do revisionismo estalinista. Ou, num quase grau zero da mentira, o silêncio que, por o ser, é ocultação de uma verdade; as mentiras por inércia. No rescaldo das palavras que se dizem, quantas mentiras ficam reservadas ao íntimo do seu autor? Quantas são as mentiras que nunca chegam ao pergaminho de mentira por os outros não descobrirem a patranha?
Num palco assim configurado, o dia das mentiras, o dia em que as pessoas se aldrabam umas às outras em jogo lúdico, devia perder lugar nas celebrações informais que ganharam direito a calendário. Talvez fosse mais congruente tornar o primeiro de abril o dia das verdades.

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