Chet Faker, “Gold”, in https://www.youtube.com/watch?v=hi4pzKvuEQM
Oxalá pudesse encorajar
o cinismo a ficar dentro da toca quando aparecem personagens a alardear
bravura. Oxalá não usasse do cinismo quando digo que tenho inveja desses
corajosos que, se preciso for, deitam o peito às balas porque se acham feitos
de uma genética matéria onde a bravura prolifera. Não sei se são apenas
néscios, ou se tratam da pessoa própria com inconsequência.
Não acredito que haja
quem não tenha um sótão cheios de medos. De medos que variam consoante as aversões
que tomam conta das diferentes pessoas. A menos que estejamos diante de loucos
em estado puro, ou de personagens tomadas por um qualquer atraso mental, ou de
mitómanos que se têm em muito elevada consideração. Temos medos. Medos
diferentes. Medos mais, medos menos.
Eu não posso ver
cobras por perto. Tenho pesadelos com aviões em queda, sem nunca ser seu
passageiro – e, talvez por este detalhe do sonho recorrente, não tenho medo de
andar de avião. Tenho medo de, sem saber como, aparecer nu no meio de uma rua
movimentada da cidade, em pleno dia. Tenho medo que o chão fuja debaixo dos
pés, outra vez em conformidade com pesadelos recorrentes. Tenho medo de espaços
acanhados e escuros; não era capaz de entrar numa gruta apertada e sem luz, por
mais que me garantissem que o mapa das vielas da gruta estava devidamente
assimilado. Tenho medo de gente tresloucada a meio de um acesso de loucura –
quem sabe se não se cai no redil das vítimas da demência instantânea que termina
num acesso de violência. Tenho medo de gente desmesuradamente ambiciosa, gente
que não trava ímpetos soezes quando precisa de atropelar o próximo para subir
na hierarquia. Tenho medo que nos organizemos, como associação social e política,
em reação ao medo covardemente espalhado por apóstolos do terror – e tenho medo
desses endemoninhados que não cultivam a majestade da vida. E tenho medo dos
valentes que ostentam uma coragem demencial, pois nunca se sabe se são apenas
como os cães que ladram sem terem o topete de morder, ou se podem ser apoderados
por uma cegueira momentânea e disparatar ao acaso.
Tenho medos, uns
racionais, outros fundeados no poder de sugestão de pesadelos que se reiteram. E
não tenho medo de abrir o peito para que fiquem esses medos à mostra. Talvez
seja uma maneira diferente de mostrar, sem exibir, coragem.
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