Parquet Courts, “Dust”, in https://www.youtube.com/watch?v=lRG3R2FmGlY
Já não chegavam todas as apoquentações; agora tinha outra
a transpirar-lhe as mãos, talvez a mais angustiante de todas. O vulto,
personificação de um juiz da sua conduta, partira deixando um enigma a pairar
nas gotas do nevoeiro. Não seria função do vulto ditar a punição por todos os
desvios de conduta que lhe eram imputados. Seria sua a empreitada.
Não sabia que tempo faltava para a noite terminar. Como se
fosse mais um ingrediente da conspiração montada, tinha-se esquecido do relógio.
Logo ele, que admitia ser um fiel seguidor dos preceitos do tempo. Logo ele,
que reconhecia como tique o olhar constante para o relógio como imperativo da
localização do tempo. Importava saber se a alvorada se demorava, para derrotar
o medo que subira à boca de cena com o arrastar da noite. Talvez ainda se
demorasse, a noite: no inverno, as noites vão pelo tempo fora, demoram. E
porque importava saber se a noite ainda tinha muito tempo para si? Porque a
lucidez estava obstruída enquanto as trevas fizessem as vezes da paisagem. E,
agora, tinha outro dilema a azedar a meditação: que punição devia cominar pelos
delitos admitidos?
O outro homem, demoradamente desmaiado, continuava
recostado ao seu regaço. Era outra importunação: não seria coisa da natureza
desmaio tão demorado. Porventura seria um estado comatoso, um sinal da
gravidade do desfalecimento. Entre tantas demandas, ele perdia a orientação ao
pensamento. Era uma enchente de sentimentos que o invadiam, pensamentos que se
sobrepunham, um embaraço às resoluções. Talvez fosse melhor esperar pela
aurora. Mas, por outro lado, demorar na reação podia ser fatal para o homem
inanimado. Que raio! Tantas arestas vivas a incomodar a razão. Conseguiu, ainda
assim, ter tento no desarvoramento: não podia sair daquele lugar enquanto a luz
do dia não viesse substituir a noite. Não podia arrastar às costas o corpo
inerte do outro homem – o homem tinha envergadura que barrava essa ideia. Não
se podia mover pela floresta cheia de armadilhas enquanto a luz não as pusesse à
mostra.
Enquanto esperava que a alvorada destituísse a noite pavorosa,
conseguiu afunilar o pensamento: o que teria de fazer para responder ao repto
do vulto que foi seu julgador? Ao admitir que era impuro, tornou-se refém do
vulto. Ficou acertado, neste acerto de contas, que seria ele a cuidar de
cominar castigo pelas impurezas acordadas. Ao início, desconfiou da
liberalidade do vulto. Podia ser que o vulto confiasse nele e que nada mais
acontecesse; podia ser que o vulto se esquecesse de o revisitar caso se
esquecesse de responder ao repto do vulto – caso fizesse de conta que não tinha
de determinar o castigo e a redenção a seu cargo. E, assim como assim, se
aceitara ser julgado pelo vulto, e admitira a culpa nos terríficos desvios de
que vinha acusado, podia renegar o julgamento, invocar o desespero que lhe
embaciara o juízo para recusar a expiação dos males que lhe eram imputados.
Não levou muito tempo para desconfiar desta convocatória
para a inércia. Tinha a impressão que o vulto não o ditaria ao esquecimento. Se
viera para o acerto de contas, e se acertara com ele a expiação da culpa e lhe
endossara a redenção, admitia que estava sob vigilância do vulto seu julgador,
estivesse ele onde estivesse. Não queria incorrer no esquecimento da empreitada
acordada no acerto de contas. Não queria repetir a experiência de ser levado à
presença do vulto medonho. Tinha de aproveitar o tempo até ao nascer do sol
para encontrar, entre o tumulto da memória e o repto do porvir, remédio para as
impurezas sentenciadas.
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