21.4.16

Floresta (6)

Parquet Courts, “Dust”, in https://www.youtube.com/watch?v=lRG3R2FmGlY
Já não chegavam todas as apoquentações; agora tinha outra a transpirar-lhe as mãos, talvez a mais angustiante de todas. O vulto, personificação de um juiz da sua conduta, partira deixando um enigma a pairar nas gotas do nevoeiro. Não seria função do vulto ditar a punição por todos os desvios de conduta que lhe eram imputados. Seria sua a empreitada.
Não sabia que tempo faltava para a noite terminar. Como se fosse mais um ingrediente da conspiração montada, tinha-se esquecido do relógio. Logo ele, que admitia ser um fiel seguidor dos preceitos do tempo. Logo ele, que reconhecia como tique o olhar constante para o relógio como imperativo da localização do tempo. Importava saber se a alvorada se demorava, para derrotar o medo que subira à boca de cena com o arrastar da noite. Talvez ainda se demorasse, a noite: no inverno, as noites vão pelo tempo fora, demoram. E porque importava saber se a noite ainda tinha muito tempo para si? Porque a lucidez estava obstruída enquanto as trevas fizessem as vezes da paisagem. E, agora, tinha outro dilema a azedar a meditação: que punição devia cominar pelos delitos admitidos?
O outro homem, demoradamente desmaiado, continuava recostado ao seu regaço. Era outra importunação: não seria coisa da natureza desmaio tão demorado. Porventura seria um estado comatoso, um sinal da gravidade do desfalecimento. Entre tantas demandas, ele perdia a orientação ao pensamento. Era uma enchente de sentimentos que o invadiam, pensamentos que se sobrepunham, um embaraço às resoluções. Talvez fosse melhor esperar pela aurora. Mas, por outro lado, demorar na reação podia ser fatal para o homem inanimado. Que raio! Tantas arestas vivas a incomodar a razão. Conseguiu, ainda assim, ter tento no desarvoramento: não podia sair daquele lugar enquanto a luz do dia não viesse substituir a noite. Não podia arrastar às costas o corpo inerte do outro homem – o homem tinha envergadura que barrava essa ideia. Não se podia mover pela floresta cheia de armadilhas enquanto a luz não as pusesse à mostra.
Enquanto esperava que a alvorada destituísse a noite pavorosa, conseguiu afunilar o pensamento: o que teria de fazer para responder ao repto do vulto que foi seu julgador? Ao admitir que era impuro, tornou-se refém do vulto. Ficou acertado, neste acerto de contas, que seria ele a cuidar de cominar castigo pelas impurezas acordadas. Ao início, desconfiou da liberalidade do vulto. Podia ser que o vulto confiasse nele e que nada mais acontecesse; podia ser que o vulto se esquecesse de o revisitar caso se esquecesse de responder ao repto do vulto – caso fizesse de conta que não tinha de determinar o castigo e a redenção a seu cargo. E, assim como assim, se aceitara ser julgado pelo vulto, e admitira a culpa nos terríficos desvios de que vinha acusado, podia renegar o julgamento, invocar o desespero que lhe embaciara o juízo para recusar a expiação dos males que lhe eram imputados.
Não levou muito tempo para desconfiar desta convocatória para a inércia. Tinha a impressão que o vulto não o ditaria ao esquecimento. Se viera para o acerto de contas, e se acertara com ele a expiação da culpa e lhe endossara a redenção, admitia que estava sob vigilância do vulto seu julgador, estivesse ele onde estivesse. Não queria incorrer no esquecimento da empreitada acordada no acerto de contas. Não queria repetir a experiência de ser levado à presença do vulto medonho. Tinha de aproveitar o tempo até ao nascer do sol para encontrar, entre o tumulto da memória e o repto do porvir, remédio para as impurezas sentenciadas.

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