António Variações, “Estou além”,
in https://www.youtube.com/watch?v=DLon1NWIisA
Na sexta-feira, António Guerreiro, no suplemento
cultural do Público, mostrou como
podemos ser reféns de paradoxos que cavalgam, sem freio, no pensamento. Quando
as cidades (julgo que se refere a Lisboa, mas aplica-se ao Porto onde nasci e
vivi tanto tempo) não chegaram aos umbrais do turismo, somos tacanhos, não damos
valor ao cosmopolitismo, ensimesmamos e deixamos o chão aberto para a
mesquinhez cultural. A cidade é um marasmo.
Anos depois, a cidade transfigura-se. É um constante postal
turístico. Atrai cada vez mais turistas. Andar pelo centro da cidade pode ser
uma experiência de desenraizamento, pois apenas nos cruzamos com estrangeiros e
nem sequer conseguimos ouvir o idioma nativo. Reagimos – contra a massificação
do turismo que adultera a cidade, que adultera a nossa pertença. E que nos
transfigura, ato contínuo: pois passamos de uma reação inicial de incómodo com
o turismo, para exacerbar um sentimento de repulsa com o outro que nos visita. O
opróbrio abate-se sobre nós, quando damos conta que já negamos (o
cosmopolitismo) que pretendíamos quando a cidade não tinha saído do anonimato.
A explicação estará na propensão para sermos eternamente
insatisfeitos. Por estarmos bem com o que não temos, preconceito que pode conter
em si uma faceta construtiva, se ao mesmo tempo soubermos identificar o que
queremos como alternativa e se com ela (acharmos que) estamos a mudar para
melhor. A tacanhez da cidade (e julgo ser mais visível com o Porto do que com
Lisboa, quando ambas não tinham entrado nas rotas turísticas) é castradora:
estreita os horizontes; se não formos ao fundo de nós para encontrar os
sedimentos dos outros fora das fronteiras, não deixamos de ser pequenos, cada
vez mais pequenos. Surge o desejo de conviver com os forasteiros. Eles devem
ser atraídos até à nossa cidade se queremos amadurecer com uma multiplicidade
de cosmovisões corporizadas na diversidade de turistas.
Só que depois, ao passarmos de um quase deserto para a
abundância, quando a cidade de repente está nas preferências dos turistas e
eles começam a tomar conta das ruas e dos monumentos emblemáticos, julgamos que
o clamor entornou os limites – pelos menos, daquilo que julgávamos serem os
limites certos do turismo, nunca antes definidos tais limites se não num
abstrato exercício. E julgamos ser forasteiros na cidade-mãe, a chave de ouro entregue
aos forasteiros que fazem dela seu porto de abrigo por um punhado de dias. Locupletando
a sua identidade, a nossa identidade. O cansaço dos outros contrasta com a sede
que deles tínhamos. Caímos num paradoxo.
Mas só caímos num paradoxo se nos deixarmos sitiar pelo
abismo dos excessos. Se não temperarmos as medidas e fizermos a interrogação
crucial: preferimos a cidade atávica de outrora, ou queremo-la vibrante, frenética,
cosmopolita, multirracial, num turbilhão de diferentes idiomas – como hoje? Tropeçar num limite (a sede de
turistas) e depois esbarrar no outro limite (a desidentificação cerzida na
invasão de turistas) é pueril, inconsequente. Cair neste paradoxo mostra como
alguns estão fadados para um permanente estado de insatisfação. Só estão bem
onde não estão. Mal o deles.
Sem comentários:
Enviar um comentário