14.4.16

Floresta (1)

Mão Morta, “Floresta em Sonho”, in https://www.youtube.com/watch?v=12f-vEtAo-0
- O que vês no nevoeiro da floresta?
- As árvores desmaiadas. As gotículas que se desprendem das ramagens. Uma luz baça. Vejo que é difícil ver.
- Não notas um vulto que voeja, errático?
- Dizes, um vulto. Esse vulto tem forma?
- É apenas um vulto. Não consigo fixar os seus limites. Diria: mais me parece um fantasma.
- O vulto, ou o fantasma (como queiras), aparece em silêncio, ou diz-te alguma coisa?
- Consigo perceber uma boca medonha, entreaberta, os lábios ensaiando movimentos como acontece a quem quer falar qualquer coisa. Mas não ouço nada.
- Tens a certeza do vulto? Não serão as sombras que se misturam com uma cornucópia de feitios entre o arvoredo, dando a impressão de um vulto?
- Duvidas de mim?
- Não desconfio da tua lucidez. Regresso à casa da partida: perguntavas se eu notava um vulto voejando pela floresta em comandita com o nevoeiro fechado. Como não consegui tirar as medidas ao vulto, pergunto se achaste a certeza no que viste.
- Sinto que para onde vá, o vulto adeja sobre mim. Com aquela bocarra bem aberta, berrando qualquer composição de palavras que eu deveria ouvir, deveria perceber.
- Podes estar sugestionado. Com o nevoeiro que empresta mistério à floresta, como se estivéssemos no palco de um filme de terror...
- ... Mas eu não tenho medo de semelhantes coisas, nem me sugestiono com pouca coisa.
- Vou tomar atenção, bem ao teu lado. Vejamos se nos próximos minutos dou conta do vulto de que falas.
(O silêncio compõe-se à medida que avançam na floresta, sem saberem para onde vão. Estão mais atentos ao que pode pesar sobre as suas cabeças. Não admira que se tenham perdido no meio da floresta densa.)
- Ainda não travei conhecimento com o vulto. Ele já te apareceu neste caminho que fizemos até aqui?
- Não me levas a sério: já te tinha avisado da presença do vulto, caso ele tivesse emergido do nevoeiro.
- Estou em crer que o vulto era apenas um ardil para nos trazer ao estado em que estamos: perdidos no meio da floresta, incapazes de encontrar orientação pelo sol devido ao plúmbeo nevoeiro que obstruiu o céu.
- Eu ainda acho que o vulto pode aparecer a qualquer momento. Tenho medo. Senti suores frios quando ele me rondou há pouco.
- A julgar pelos momentos que nos trouxeram até aqui, estou em condições de assegurar que a minha presença é uma caução. Tens medo do vulto e o vulto parece ter medo de mim, ou pelo menos construiu um muro de vergonha devido à minha presença.
- Se achas que me sossegas com troça...
- Não é troça. Repara: estamos num lugar remoto no meio da floresta, sem orientação, nem saber para onde ir, e tu ainda apoquentado por um vulto, ou um fantasma. Não tens mais medo de passar a noite ao relento nas trevas da floresta?
- Tens razão. Até porque, à noite, decerto teremos a visita do vulto. Vamos sair daqui e depressa.
(E partiu para onde o corpo estava virado, sem saber se era a direção certa e sem esperar pelo amigo.)

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