Mão
Morta, “Floresta em Sonho”, in https://www.youtube.com/watch?v=12f-vEtAo-0
- O que vês no nevoeiro da floresta?
- As árvores desmaiadas. As gotículas que se desprendem
das ramagens. Uma luz baça. Vejo que é difícil ver.
- Não notas um vulto que voeja, errático?
- Dizes, um vulto. Esse vulto tem forma?
- É apenas um vulto. Não consigo fixar os seus limites.
Diria: mais me parece um fantasma.
- O vulto, ou o fantasma (como queiras), aparece em
silêncio, ou diz-te alguma coisa?
- Consigo perceber uma boca medonha, entreaberta, os
lábios ensaiando movimentos como acontece a quem quer falar qualquer coisa. Mas
não ouço nada.
- Tens a certeza do vulto? Não serão as sombras que se
misturam com uma cornucópia de feitios entre o arvoredo, dando a impressão de
um vulto?
- Duvidas de mim?
- Não desconfio da tua lucidez. Regresso à casa da
partida: perguntavas se eu notava um vulto voejando pela floresta em comandita
com o nevoeiro fechado. Como não consegui tirar as medidas ao vulto, pergunto
se achaste a certeza no que viste.
- Sinto que para onde vá, o vulto adeja sobre mim. Com
aquela bocarra bem aberta, berrando qualquer composição de palavras que eu
deveria ouvir, deveria perceber.
- Podes estar sugestionado. Com o nevoeiro que empresta mistério
à floresta, como se estivéssemos no palco de um filme de terror...
- ... Mas eu não tenho medo de semelhantes coisas, nem me
sugestiono com pouca coisa.
- Vou tomar atenção, bem ao teu lado. Vejamos se nos
próximos minutos dou conta do vulto de que falas.
(O silêncio compõe-se à medida que avançam na floresta,
sem saberem para onde vão. Estão mais atentos ao que pode pesar sobre as suas
cabeças. Não admira que se tenham perdido no meio da floresta densa.)
- Ainda não travei conhecimento com o vulto. Ele já te
apareceu neste caminho que fizemos até aqui?
- Não me levas a sério: já te tinha avisado da presença
do vulto, caso ele tivesse emergido do nevoeiro.
- Estou em crer que o vulto era apenas um ardil para nos
trazer ao estado em que estamos: perdidos no meio da floresta, incapazes de
encontrar orientação pelo sol devido ao plúmbeo nevoeiro que obstruiu o céu.
- Eu ainda acho que o vulto pode aparecer a qualquer
momento. Tenho medo. Senti suores frios quando ele me rondou há pouco.
- A julgar pelos momentos que nos trouxeram até aqui,
estou em condições de assegurar que a minha presença é uma caução. Tens medo do
vulto e o vulto parece ter medo de mim, ou pelo menos construiu um muro de
vergonha devido à minha presença.
- Se achas que me sossegas com troça...
- Não é troça. Repara: estamos num lugar remoto no meio
da floresta, sem orientação, nem saber para onde ir, e tu ainda apoquentado por
um vulto, ou um fantasma. Não tens mais medo de passar a noite ao relento nas trevas
da floresta?
- Tens razão. Até porque, à noite, decerto teremos a
visita do vulto. Vamos sair daqui e depressa.
(E partiu para onde o corpo estava virado, sem saber se
era a direção certa e sem esperar pelo amigo.)
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