Cage the Elephant, “Trouble”,
in https://www.youtube.com/watch?v=lA-gGl6qihQ
De facto: o homem que estivera desmaiado – ou que
simulara o seu desmaio –, o homem que agora aparecia como reencarnação da
consciência do outro homem, conhecia a floresta. Não tergiversava, metendo os pés
pelo trilho apertado e cheio de arbustos. Não tergiversava ao chegar a uma
encruzilhada, avançando, resoluto, pelo caminho que os tirava do alçapão da
floresta.
Só que as dúvidas voltavam a afligir o homem medroso: e
se o outro homem, o que se dizia representação do vulto, estivesse a levá-lo
para o degredo, ou para os calabouços algures na floresta, ou para um precipício
para depois o empurrar sem remédio? O homem condenado padecia, outra vez, do
tumulto interior fermentado pelas dúvidas. Por outro lado, desconfiava. Sempre fora
assim. Desconfiava de toda a gente. Nunca percebeu, nem se esforçou por
perceber, se alguma vez fora vítima de desconfiança para achar a desconfiança
como método. Essa era uma dúvida que tinha de ficar para memória futura. Se houvesse
memória futura; estava tão desconfiado das intenções do homem que agora servia
de cicerone para se extrair à floresta como sabia, no seu íntimo, que não
queria resolver as dúvidas existenciais quando a floresta desse lugar a outro
lugar (como prometera). Imputava ao outro uma intenção que era a reprodução simétrica
da sua intenção. Era como se todas as pessoas fossem meros peões e todos se
achassem no tabuleiro para ludibriar os demais. Neste modo, “a desconfiança era o único método aconselhável”,
interiorizava o homem condenado, como se fosse preciso convencer-se a si mesmo
(o que não era o caso).
Já andavam há umas horas e a floresta continuava a ter o
mesmo aspeto: impenetrável, um arvoredo denso que fazia parelha com arbustos às
vezes difíceis de desbravar. Olhasse para onde olhasse, só havia árvores e o
ainda nevoeiro, que continuava a ser um suplício, dando seguimento ao dia
anterior. Impaciente, o homem condenado perguntou:
- Ainda falta muito
para o fim da floresta?
- Já faltou mais.
- É que já andamos há
tanto tempo e não vejo o fundo à floresta...
- Não me perguntaste
antes se estávamos longe da saída da floresta.
- Devia-o ter feito?
- Tu é que sabes. Tu és
o interessado em sair da floresta.
- Às vezes pergunto se
não me estás a enganar. Às vezes, sinto que andamos em círculos, pois tudo o
que os olhos alcançam são as cansativas árvores.
- (O homem que representava o vulto ignorou, de propósito,
a desconfiança do outro homem.) Digo-te
agora: o lugar onde pernoitamos era equidistante das quatro entradas possíveis
da floresta. Trago-te por este trilho porque é o que leva ao melhor caminho
para chegares à cidade, uma vez abandonada a floresta.
- Não te incomodou que
tenha desconfiado de ti?
- Não. Como reencarnação
da tua consciência, consigo ler pensamentos teus antes de os traduzires em
palavras.
O outro homem emudeceu. Não sabia se havia de entender
as derradeiras palavras como advertência. Se podiam significar uma moratória
para as segundas intenções que pudesse congeminar enquanto faziam o caminho. Ou
se era apenas bluff. Tão bluff como o agora cicerone ser testa-de-ferro
do vulto e, por essa via, personificar a sua consciência. O melhor era esperar
algum tempo. Esperar que o arvoredo ficasse menos denso, talvez sinal de que a
floresta estava a findar. Até lá, tinha tempo para congeminar um plano. Desvalorizou
a hipótese de o outro homem conseguir ler os seus pensamentos. E que
conseguisse; tinha de arriscar. Decidira: não queria ficar refém das sentenças
dos outros, mesmo que eles se ajuramentassem como encarnação da sua consciência.
Não o admitia.
Enfim, uma clareira desprovida de arvoredo. Devia ser o
fim da floresta. Uma avenida bordejada por cordões que uniam as paliçadas
terminava num portão que era, na perspetiva dos dois homens, a saída da
floresta. O homem que representava o vulto continuava à frente, a dizer o
caminho. O caminho era agora largo ao ponto de os dois homens poderem caminhar
a par. Mas o homem condenado manteve-se na retaguarda, um passo atrás do seu
cicerone. Este, por sua vez, não temeu pela segurança. Confiava. Foi o seu
erro. Quase no fim da avenida que levava à saída da floresta, o homem condenado
pegou num tronco de madeira que estava no chão e assestou um golpe forte e seco
na nuca do outro homem. Ficou a jazer no chão, esvaindo-se em sangue. O homem
condenado ainda arranjou forças, apesar do cansaço geral, para correr para fora
da floresta. “Agora estou a salvo”, suspirou.
Sem comentários:
Enviar um comentário