26.4.16

Floresta (9)

Cage the Elephant, “Trouble”, in https://www.youtube.com/watch?v=lA-gGl6qihQ
De facto: o homem que estivera desmaiado – ou que simulara o seu desmaio –, o homem que agora aparecia como reencarnação da consciência do outro homem, conhecia a floresta. Não tergiversava, metendo os pés pelo trilho apertado e cheio de arbustos. Não tergiversava ao chegar a uma encruzilhada, avançando, resoluto, pelo caminho que os tirava do alçapão da floresta.
Só que as dúvidas voltavam a afligir o homem medroso: e se o outro homem, o que se dizia representação do vulto, estivesse a levá-lo para o degredo, ou para os calabouços algures na floresta, ou para um precipício para depois o empurrar sem remédio? O homem condenado padecia, outra vez, do tumulto interior fermentado pelas dúvidas. Por outro lado, desconfiava. Sempre fora assim. Desconfiava de toda a gente. Nunca percebeu, nem se esforçou por perceber, se alguma vez fora vítima de desconfiança para achar a desconfiança como método. Essa era uma dúvida que tinha de ficar para memória futura. Se houvesse memória futura; estava tão desconfiado das intenções do homem que agora servia de cicerone para se extrair à floresta como sabia, no seu íntimo, que não queria resolver as dúvidas existenciais quando a floresta desse lugar a outro lugar (como prometera). Imputava ao outro uma intenção que era a reprodução simétrica da sua intenção. Era como se todas as pessoas fossem meros peões e todos se achassem no tabuleiro para ludibriar os demais. Neste modo, “a desconfiança era o único método aconselhável”, interiorizava o homem condenado, como se fosse preciso convencer-se a si mesmo (o que não era o caso).
Já andavam há umas horas e a floresta continuava a ter o mesmo aspeto: impenetrável, um arvoredo denso que fazia parelha com arbustos às vezes difíceis de desbravar. Olhasse para onde olhasse, só havia árvores e o ainda nevoeiro, que continuava a ser um suplício, dando seguimento ao dia anterior. Impaciente, o homem condenado perguntou:
- Ainda falta muito para o fim da floresta?
- Já faltou mais.
- É que já andamos há tanto tempo e não vejo o fundo à floresta...
- Não me perguntaste antes se estávamos longe da saída da floresta.
- Devia-o ter feito?
- Tu é que sabes. Tu és o interessado em sair da floresta.
- Às vezes pergunto se não me estás a enganar. Às vezes, sinto que andamos em círculos, pois tudo o que os olhos alcançam são as cansativas árvores.
- (O homem que representava o vulto ignorou, de propósito, a desconfiança do outro homem.) Digo-te agora: o lugar onde pernoitamos era equidistante das quatro entradas possíveis da floresta. Trago-te por este trilho porque é o que leva ao melhor caminho para chegares à cidade, uma vez abandonada a floresta.
- Não te incomodou que tenha desconfiado de ti?
- Não. Como reencarnação da tua consciência, consigo ler pensamentos teus antes de os traduzires em palavras.
O outro homem emudeceu. Não sabia se havia de entender as derradeiras palavras como advertência. Se podiam significar uma moratória para as segundas intenções que pudesse congeminar enquanto faziam o caminho. Ou se era apenas bluff. Tão bluff como o agora cicerone ser testa-de-ferro do vulto e, por essa via, personificar a sua consciência. O melhor era esperar algum tempo. Esperar que o arvoredo ficasse menos denso, talvez sinal de que a floresta estava a findar. Até lá, tinha tempo para congeminar um plano. Desvalorizou a hipótese de o outro homem conseguir ler os seus pensamentos. E que conseguisse; tinha de arriscar. Decidira: não queria ficar refém das sentenças dos outros, mesmo que eles se ajuramentassem como encarnação da sua consciência. Não o admitia.
Enfim, uma clareira desprovida de arvoredo. Devia ser o fim da floresta. Uma avenida bordejada por cordões que uniam as paliçadas terminava num portão que era, na perspetiva dos dois homens, a saída da floresta. O homem que representava o vulto continuava à frente, a dizer o caminho. O caminho era agora largo ao ponto de os dois homens poderem caminhar a par. Mas o homem condenado manteve-se na retaguarda, um passo atrás do seu cicerone. Este, por sua vez, não temeu pela segurança. Confiava. Foi o seu erro. Quase no fim da avenida que levava à saída da floresta, o homem condenado pegou num tronco de madeira que estava no chão e assestou um golpe forte e seco na nuca do outro homem. Ficou a jazer no chão, esvaindo-se em sangue. O homem condenado ainda arranjou forças, apesar do cansaço geral, para correr para fora da floresta. “Agora estou a salvo”, suspirou.

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