22.4.16

Floresta (7)

Samuel Úria, “Lenço Enxuto” (ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=PzxvmoIJgKo
Que o tempo até a ser manhã tivesse serventia para interiorizar os delitos de que fora acusado. Aprovou o método – o que não era nada mau para quem estava em pânico por todas as razões sabidas. O método aprovado exigia meditação calculada sobre os delitos. Só depois faria sentido aprovar a redenção de que fora incumbido.
Recordou o rol de acusações proferidas pelo vulto: “mentiras intencionais; tirar partido das mentiras intencionais para chegar a uma posição privilegiada; falta de escrúpulos, o gosto secreto em congeminar ardis de que são vítimas outras pessoas; roubo de um coração, com lesão irremediável para um amigo; a castração dos filhos, incapazes de pensarem pela própria cabeça devido à asfixia que sobre eles cometia; aquele cão que matara, sem outra razão se não o desafio imberbe de uns amigos; o adultério e o ciúme sem fundamento, a não ser a reprodução em si dos fantasmas que o consomem caso a consorte cominasse a mesma deslealdade que lhe deixara em herança.” Tantas acusações exigiam meditação demorada. O que veio à cabeça em primeiro lugar foram os delitos outros que o vulto não tomou conhecimento, ou que apenas não quis enumerar, satisfeito que aparentava estar com as então pronunciadas.
Como era habitual, começou a perder-se com minudências que o atavam ao acessório e o desligavam do substancial: teria o vulto desconhecimento de outros delitos que podiam ser imputados, ou foi apenas generoso por o ter poupado à expiação imperativa dos não pronunciados delitos? Se o vulto era a personificação da sua consciência, como foi por ele revelado, estaria distraído das malfeitorias outras, não arroladas pelo vulto, de que reconhecia ter sido fautor? Seria o vulto um impostor ao fazer-se passar como personagem da sua consciência, se não aprovou, no elenco dos delitos, todos os de que podia ser incriminado? Mas, em sendo assim, como podia o vulto saber de todos os delitos que leu no laudo acusatório? 
Podia ser uma denúncia. Mas quem o teria denunciado? Uma vítima de uma das muitas mentiras? Um colega de trabalho que ficou para trás na carreira por causa das suas trapaças? Alguém apanhado no meio da turbulência arranjada pela falta de escrúpulos? Aquele amigo de longa data a quem roubara a mulher amada – ou a própria mulher, depressa abandonada à mercê dos seus, por vezes, inumanos caprichos? Um dos filhos, incapaz de suportar por mais tempo a educação castrense e os humores voláteis do pai? A consorte, com a paciência esgotada para os constantes episódios de traição e cansada de aguentar a esquizofrenia de quem ostentava ciúme repulsivo sem razão a não ser uma culpa mal expiada? Ou seria o fantasma do pobre cão vadio que matara sem razão nenhuma?
Era preciso voltar ao fulcro da questão. Meditar sobre as acusações para depois tirar as medidas à redenção exigida. E, apesar das divagações – de que era vezeiro –, sossegou-se ao dar conta que tinha conseguido voltar ao substancial. Depois de todas as interrogações existenciais, que não tinham função outra se não a de procrastinar os problemas que demandavam solução, percebeu que as derradeiras interrogações, as que fizera sobre os possíveis autores de uma possível denúncia ao vulto, coincidiam com o reconhecimento das malfeitorias de que vinha acusado.
Sim, admitia: fizera tudo aquilo. E fizera-o em consciência, muitas vezes como ato final de um conjunto de ações deliberadas. Com a consciência de que esses atos mereciam reprovação de acordo com os – a expressão não era da sua lavra – “cânones da boa convivência em sociedade”. E, ainda pior, depois de todos os atos cometidos, nunca fora assaltado por dúvidas, nunca sentira um murmúrio interior, a vociferação por uma parte escondida do seu eu, a exigir lamentação.
À medida que a noite era dissolvida pela alvorada em antecipação e que alguma claridade escorraçava as trevas para a noite seguinte, tinha a noção que era um caso perdido. Não sabia se o vulto aceitava o simples reconhecimento de todos os delitos. Não sabia que reação teria o vulto se confessasse que nunca sentiu remorso pelas transgressões de que vinha acusado – nem de outras a que passara incólume no laudo acusatório. De repente, apetecia-lhe algo que julgava improvável umas horas antes: chamar o vulto, para que estas dúvidas ficassem sanadas.

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