Samuel Úria, “Lenço Enxuto”
(ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=PzxvmoIJgKo
Que o tempo até a ser manhã tivesse serventia para
interiorizar os delitos de que fora acusado. Aprovou o método – o que não era
nada mau para quem estava em pânico por todas as razões sabidas. O método
aprovado exigia meditação calculada sobre os delitos. Só depois faria sentido
aprovar a redenção de que fora incumbido.
Recordou o rol de acusações proferidas pelo vulto: “mentiras intencionais; tirar partido das
mentiras intencionais para chegar a uma posição privilegiada; falta de
escrúpulos, o gosto secreto em congeminar ardis de que são vítimas outras
pessoas; roubo de um coração, com lesão irremediável para um amigo; a castração
dos filhos, incapazes de pensarem pela própria cabeça devido à asfixia que
sobre eles cometia; aquele cão que matara, sem outra razão se não o desafio
imberbe de uns amigos; o adultério e o ciúme sem fundamento, a não ser a
reprodução em si dos fantasmas que o consomem caso a consorte cominasse a mesma
deslealdade que lhe deixara em herança.” Tantas acusações exigiam meditação
demorada. O que veio à cabeça em primeiro lugar foram os delitos outros que o
vulto não tomou conhecimento, ou que apenas não quis enumerar, satisfeito que aparentava
estar com as então pronunciadas.
Como era habitual, começou a perder-se com minudências
que o atavam ao acessório e o desligavam do substancial: teria o vulto
desconhecimento de outros delitos que podiam ser imputados, ou foi apenas generoso
por o ter poupado à expiação imperativa dos não pronunciados delitos? Se o
vulto era a personificação da sua consciência, como foi por ele revelado, estaria
distraído das malfeitorias outras, não arroladas pelo vulto, de que reconhecia
ter sido fautor? Seria o vulto um impostor ao fazer-se passar como personagem
da sua consciência, se não aprovou, no elenco dos delitos, todos os de que podia
ser incriminado? Mas, em sendo assim, como podia o vulto saber de todos os
delitos que leu no laudo acusatório?
Podia ser uma denúncia. Mas quem o teria denunciado? Uma
vítima de uma das muitas mentiras? Um colega de trabalho que ficou para trás na
carreira por causa das suas trapaças? Alguém apanhado no meio da turbulência
arranjada pela falta de escrúpulos? Aquele amigo de longa data a quem roubara a
mulher amada – ou a própria mulher, depressa abandonada à mercê dos seus, por
vezes, inumanos caprichos? Um dos filhos, incapaz de suportar por mais tempo a
educação castrense e os humores voláteis do pai? A consorte, com a paciência
esgotada para os constantes episódios de traição e cansada de aguentar a
esquizofrenia de quem ostentava ciúme repulsivo sem razão a não ser uma culpa
mal expiada? Ou seria o fantasma do pobre cão vadio que matara sem razão
nenhuma?
Era preciso voltar ao fulcro da questão. Meditar sobre
as acusações para depois tirar as medidas à redenção exigida. E, apesar das
divagações – de que era vezeiro –, sossegou-se ao dar conta que tinha
conseguido voltar ao substancial. Depois de todas as interrogações
existenciais, que não tinham função outra se não a de procrastinar os problemas
que demandavam solução, percebeu que as derradeiras interrogações, as que
fizera sobre os possíveis autores de uma possível denúncia ao vulto, coincidiam
com o reconhecimento das malfeitorias de que vinha acusado.
Sim, admitia: fizera tudo aquilo. E fizera-o em consciência,
muitas vezes como ato final de um conjunto de ações deliberadas. Com a consciência
de que esses atos mereciam reprovação de acordo com os – a expressão não era da
sua lavra – “cânones da boa convivência em sociedade”. E, ainda pior, depois de
todos os atos cometidos, nunca fora assaltado por dúvidas, nunca sentira um
murmúrio interior, a vociferação por uma parte escondida do seu eu, a exigir
lamentação.
À medida que a noite era dissolvida pela alvorada em antecipação
e que alguma claridade escorraçava as trevas para a noite seguinte, tinha a noção
que era um caso perdido. Não sabia se o vulto aceitava o simples reconhecimento
de todos os delitos. Não sabia que reação teria o vulto se confessasse que
nunca sentiu remorso pelas transgressões de que vinha acusado – nem de outras a
que passara incólume no laudo acusatório. De repente, apetecia-lhe algo que
julgava improvável umas horas antes: chamar o vulto, para que estas dúvidas
ficassem sanadas.
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