Explosions in the Sky, “Landing
Cliffs”, in https://www.youtube.com/watch?v=PGQgvdOPqOA
A apoquentação da dúvida viera na vez do medo da noite
passada na floresta. As dúvidas sucediam-se: podia renegar as acusações que
admitira antes? Podia confessar que jamais sentira arrependimento e fazer
regressar o pleito à casa de partida? A redenção era imperativa? No estado em
que se encontrava, não conseguia arranjar lucidez para desenhar respostas. Queria
a presença do vulto. Levantou-se, pousando com cuidado o homem desmaiado no chão
húmido. Tinha de urinar. Nestes preparos, não soube conter o chamamento, ao início
em pouco mais do que um sussurro, depois com a voz crescendo de intensidade:
- Vulto, vulto.
Preciso que venha até mim! Preciso.
Silêncio. Um silêncio pesado, como se todo o peso do
nevoeiro se abatesse sobre o silêncio da floresta e o tornasse denso. Repetiu o
chamamento:
- Vulto, há dúvidas
que precisam do seu esclarecimento. De outro modo, não sei como proceder.
Nas suas costas, ouviu uma voz trémula. Ficou atónito: não
era a voz do vulto; tinha parecenças, essa voz, com a do homem inanimado.
- O que queres de
mim? – perguntou o homem retirado ao desmaio.
- Folgo em saber que
despertaste. Sinal que o teu padecimento não é grave.
- E um pedido de
desculpas, não achas que vinha a calhar?
(Orgulhoso, o homem condenado fugiu ao repto.)
- Eu chamei o
vulto e foste tu que respondeste? Não entendo.
- Podes dizer que sou
como uma segunda consciência de ti. Um substituto do vulto, que a estas horas
está na sua imperturbável cura de sono. Sossega: tenho mandato para o
representar.
- Pode lá ser tal coisa!
- Acredita. Se quiseres
faço-te um resumo dos acontecimentos da noite.
- Como é possível? Estavas
desmaiado este tempo todo.
- Já te disse: acredita
no que digo. Estava para aqui prostrado, mas o meu eu omnisciente testemunhou
tudo. Tudo. O julgamento pelo vulto. As tuas dúvidas existenciais. O dilema que
te detém.
- Posso concluir que não
foi por acaso que apareceste quando me embrenhei na floresta.
- Sim.
- E corroboras o
julgamento do vulto?
- Se eu sou seu
representante, creio que já sabes a resposta.
- Estás – dizes – a par
das minhas angústias. Estás em condições de me ajudar, de dar resposta às
perguntas que me assaltam?
- Julgo que sim.
- E se rejeitar a
admissão de culpa que fiz perante o vulto? Até posso admitir que fiz tudo
aquilo que o vulto me acusou, mas não reconheço culpa nesses atos. Nem reconheço
no vulto autoridade para me julgar e aplicar punição.
- Julgas-me néscio?
Achas que me podes enganar, que não estou ao corrente de tudo o que se passa?
Devo recordar que admitiste os delitos e aceitaste, sob sugestão do vulto, que a
redenção fosse tua responsabilidade.
- Não interpretes mal:
não quis duvidar das tuas capacidades e até aceito que apareças aqui em
representação do vulto. Mas a tua omnisciência devia capacitar-te para captares
as dúvidas que me assaltaram depois da partida do vulto e antes que a manhã viesse.
- Não podes questionar a
autoridade do vulto. Nem podes voltar atrás com a palavra que lhe deste. Se aceitaste
ser o operário da tua redenção, em compromisso firmado com o vulto, aconselho-te
a cumprir o preceituado.
- Mas nada ficou
escrito...
- ...E é preciso?
- Julgas que me intimidas,
mas estás enganado.
(O homem condenado quis avivar a memória do homem agora
representação corpórea do vulto: umas horas antes, a luta entre ambos terminou
com o desmaio deste.)
- Não dificultes as
coisas. Estás a torná-las difíceis. Para ti mesmo. (Atirou o representante do vulto.)
- Essa agora. Queres
experimentar do mesmo? O vulto metia-me medo, a sua transcendência deixava-me lívido.
Tu és carne e osso como eu. Senti-o há umas horas, quando te deixei sem
sentidos.
- E não te ocorreu que
tudo isso não tivesse passado de uma encenação, um ardil para te levar a acreditar
em determinadas coisas?
- Queres-me dizer que não
desmaiaste?
- Tira as tuas conclusões.
- E que te deixaste
vencer na peleja que tivemos?
- Provavelmente, a
resposta está contida na pergunta que formulaste.
- A ver pelo andar das
coisas, aposto que sabias como sair da floresta, apesar de ela estar mergulhada
na noite pavimentada pelo nevoeiro.
- Conheço esta floresta
como as minhas mãos.
- Prova-o: vamos
embora, fico à espera que encontres caminho fácil que nos tire desta masmorra.
- Não tens umas dúvidas
a precisarem de esclarecimento?
- Tenho. Podem esperar
assim que franquearmos as portas de saída da floresta.
- Combinado. Vamos ao
caminho.
(Os dois homens avançaram por um trilho, sempre com o
homem representante do vulto à frente e o homem condenado na sua peugada. Este
estava aliviado: afinal não estava perdido na floresta; e, afinal, já não iria
passar a segunda noite ao relento. Mais a mais, o nevoeiro era implacável. Não dava
sinais de cedência. Era como a ausência de consciência – julgava.)
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