Sigur Rós, “Dauðalogn”, in https://www.youtube.com/watch?v=RWtx0AvGAlw
Antes de ter desatado
a correr, viu o outro homem, o que fora seu cicerone, estendido no chão. Vertia
sangue abundante da ferida aberta na nuca. Estaria morto. E, mesmo assim,
continuou a louca correria para longe da floresta. Só parou na estrada.
Cansado. E já sem medo da floresta, que era apenas uma recordação que trataria
de não guardar.
Não sentiu remorsos
por ter matado o homem que se apresentou, tardiamente, como a reencarnação da
sua consciência. Sentia um reapossar da autonomia: se era verdade que aquele
homem era a personificação da sua consciência, e se cuidava de assegurar que o
homem condenado pelos seus delitos de consciência tratava da redenção, o homem
condenado concluiu que não podia – ou não queria, o que, para o caso, ia dar ao
mesmo – ficar com a vontade sitiada. Não podia, ou não queria, ser tomado nas
mãos de um vulto, ou de um seu apoderado, para efeitos de acerto de contas. Não
podia. Ou não queria: pois esse passado estava enxameado de episódios poucos
recomendáveis, a atestar pelos repetitivos cânones que zeladores da moral não
se cansavam de apregoar, para que nenhuma ovelha se tresmalhasse do rebanho obediente.
Mas o homem condenado, numa transfiguração do homem medroso que se achava
perdido na floresta, não se achava mal no papel de ovelha tresmalhada. Esse era
o estatuto que reconhecia a si mesmo na ordem social.
Sabia que a estrada
distava longe da cidade. Longe, para quem ousasse percorrer a pé essa
distância. Esperava que passasse alguém que tivesse a cortesia de o levar à
cidade. Precisava de um banho quente e de umas boas horas de sono. De certeza,
o recomendado para sepultar a experiência da floresta, o sobressalto do vulto,
o seu heterodoxo julgamento, a morte do outro homem. O primeiro carro que
passou parou repentinamente ao seu pedido. Era um guarda florestal que saíra do
turno da noite e regressava a casa. Durante a viagem, quase não falaram –
apenas palavras de circunstância. O guarda florestal estava exausto e não
parecia disposto a conversas, ou talvez fosse feitio, alguém sem feição para
abrir os cordões da confiança a um estranho. O homem condenado aproveitou a
cortesia. Da viagem e do silêncio. Um silêncio que até convinha, não fosse
dar-se o caso de o guarda florestal iniciar um interrogatório – assim como
assim, transportar um forasteiro na orla da floresta ainda mal tinha irrompido
a alvorada podia convocar a curiosidade do guarda florestal, e o homem
condenado, de tão exaurido, podia escorregar para uma mentira incoerente.
Chegaram à cidade. Agradeceu
o transporte e apanhou o autocarro até casa. (Nem sequer ousou pedir ao guarda
florestal que o levasse a casa, não fosse acontecer que nos derradeiros minutos
emergissem as perguntas curiosas do guarda florestal.) Era um trajeto curto.
Àquela hora, já não estava ninguém em casa. A consorte sai de madrugada para o trabalho
e os filhos vão um pouco depois, que as aulas também se iniciam pouco depois da
alvorada. Era o palco ideal para não ter de responder a interrogatórios –
interiorizou. Mas logo a seguir aliviou-se do fardo que nem sequer o seria se
estivesse gente em casa à hora da sua chegada: a família estava habituada a
noites passadas fora de casa, sem aviso; e já sabia que perguntas sobre as
atividades noturnas davam mau resultado, motivando uma polvorosa de mau humor.
A caminho de casa, o
alívio começou a emudecer. Matara um homem – matara um homem! Se o vulto
regressasse à sua presença, este seria o pior dos delitos a juntar ao rol
anterior. Era estranho: não estava preocupado com a justiça dos homens. O
cadáver do outro homem seria encontrado ao fim de pouco tempo, pois nem sequer
se dera ao trabalho de o ocultar no meio da vegetação ou de se desfazer dos
vestígios do corpo. Mas não eram os tribunais que temia; era a revisitação do
vulto.
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