Deftones, “Passenger”, in https://www.youtube.com/watch?v=ycUk7ppM3To
O homem medroso, irado com as provocações do outro homem
e com medo de passar a noite na floresta, usou de tanta força que deixou o
outro homem inconsciente. Fora o resulto da luta em que se embrulharam.
Ao ver o outro homem estendido no chão, inanimado, o pânico,
que já era muito, berrou mais alto. Levou as mãos à cabeça – pois não é esse o
gesto comum quando alguém fica paralisado pela aflição? Desesperado e logo
arrependido de toda a força usada, inclinou-se para atestar o estado do outro
homem. A medo, a inclinação; vagarosa. Era dos filmes: às vezes, sem querer,
uma peleja termina da pior maneira; a vítima da queda bate com a cabeça num sítio
pontiagudo e encontra a morte.
As mãos trémulas aproximaram-se do outro homem. Não se
mexia. O homem timorato chegou-se ao rosto do outro homem para sentir sinais de
respiração. Ficou aliviado. O outro homem respirava. Devagar, mas respirava. Uma
das mãos trémulas assentou sob a cabeça deitada no chão. Sentiu humidade. Podia
estar ensanguentado – e o pânico cresceu outra vez. Era apenas humidade que
repousava no chão, o produto de um dia inteiro tingido pelo nevoeiro. O outro
homem estava desmaiado. Apenas. E este “apenas” era muito importante.
O homem pusilânime sentia-se sitiado. Queria fugir da
floresta o mais depressa possível. Estava à beira da apoplexia só de imaginar o
que seria a noite inteira no convívio da floresta sombria. Mas não queria
abandonar o outro homem, que jazia inanimado a seus pés. Dividido e com o relógio
a marcar o passo incessante do tempo, não sabia que resolução tomar. Uma metade
de si dizia: “sê pragmático: foge deste
lugar. Procura a porta da saída da floresta antes que seja noite.” Ao que a
outra metade, mais propícia a dores de consciência, contrapunha: “Está aos teus pés um teu semelhante, desfalecido.
Não o podes abandonar. Quem sabe se ele não vai ser devorado por animais que
queiram ser chacais do que julgam um cadáver.” Logo a seguir, a parte menos
humana advertia, em veemente sussurro: “mas
se o homem desmaiado nem sequer é teu amigo. Não tens deveres. Estás num
dilema, é bom lembrar-te. Se ficares a socorrer
esse homem, quem sabe se os dois não são, durante a noite, o festim das bestas
escondidas na floresta?” Ao que a metade piedosa contrapôs: “deves ficar com o homem. Ele está desmaiado.
Deves auxiliá-lo. Tu causaste o desmaio, na posse de tão desproporcionada violência
– não esqueças isto. É um módico que se te exige. E, além disso, quem te
garante que se fores sozinho pela floresta fora consegues não passar a noite
preso à floresta?” (E a metade sem escrúpulos, ao ouvir a derradeira frase,
comprazeu-se: afinal, a curadora da boa consciência também escorrega para a
ignomínia e para o egoísmo.)
Não conseguia sopesar os argumentos que se digladiavam. Perdeu
lucidez, em parte porque já se redigia a penumbra no horizonte, em parte porque
estava transtornado com os efeitos do combate. A escuridão foi tomando conta da
paisagem. Já não conseguia distinguir as fronteiras das árvores nem as formas
das coisas que compunham a paisagem. A noite tomara o seu lugar na floresta. Era
irremediável. Tão irremediável como pernoitar ao relento, no meio de uma
floresta de trevas, na companhia de um homem por ora desmaiado. E acossado por
um vulto.
Recostou-se ao tronco grosso de uma árvore e puxou o
outro homem para junto de si. Agasalhou-o. Oxalá que os dois juntos
conseguissem gerar o calor preciso para derrotar o frio e a duradoura humidade
da noite. E, oxalá também, o outro homem não demorasse a acordar. O homem
temeroso ainda não estava convencido que o outro homem apenas estava desmaiado.
Pediu ao tempo para não correr a destempo. A não ser no que à duração da noite
dizia respeito. Pois, a esse respeito, o homem temeroso começou a entoar preces
que concorressem para o apressuramento da noite. E que a noite metida no meio
da floresta das trevas não fosse pródiga em percalços.
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