30.6.16

O pescador de olhos embotados

Linda Martini, “Volta”, in https://www.youtube.com/watch?v=nTM4mC40bEw
Tinha idade de sobra para estar reformado. O velho pescador, todavia, persistia na mesma rotina. Quando o barco não podia ir ao mar, porque o mar não estava a preceito, ou porque era dia de descanso da tripulação, consagrava o tempo a reparar as artes de pesca.
Absorvido pelo seu mundo, não era de grandes falas. Perdera dois filhos em naufrágios de embarcações de pesca, em anos sucessivos. Ouvia-se dizer que a consorte, mergulhada em profunda tristeza com a perda dos filhos, emalara os pertences e, sem aviso, fugira para paradeiro incerto. (Línguas mais viperinas e dadas à especulação apostavam que a mulher se perdera de amores e fugira de um marido sem sensibilidade.) Não era de admirar que o pescador fosse um homem fechado, com o sorriso destreinado, sem interesse para conversas com os seus semelhantes.
Em tempos, alguém perguntou porque insistia em ir para a faina se o mar trazia más recordações, se o mar roubara os filhos. Impassível, contrapôs que era uma homenagem aos filhos. Que ia ao mar porque sabia que no mar, que nunca devolvera os corpos dos filhos, estava na presença dos filhos. Alguns pescadores juravam que ouviam as preces do pescador mais velho a meio da noite, depois de encerrada a faina ao puxarem as redes de volta à embarcação. O velho pescador ficava a pé quando os outros, já extenuados, se recolhiam aos beliches. Precisava da solidão para se inteirar do estado do mar. Para conversar com as almas dos filhos que estavam no mar inteiro. Não eram preces; era o pescador a meter a conversa em dia com os filhos que não estavam ausentes quando ele estava no mar distante.
Quem se abeirava do velho pescador impressionava-se com os olhos embotados. Uns olhos que se metiam fundos na cavidade que era seu lugar, como se estivessem perdidos na profundeza de um olhar que abonava a distância do velho pescador de tudo o que fosse terreno. De tudo o que considerava mundano.
Contrariando a opinião que dele tinham os que nele tomavam atenção, não se considerava um homem só. O mar era a melhor companhia. Onde sabia estar à altura da imensidão do mar. Em terra, era peixe fora de água. Malditos dias de descanso – remoía em silêncio o velho pescador, enquanto tornava mais fundo o olhar embotado.

29.6.16

O dia em que a lua não se deitou

Mogwai, “Waltz for Aidan”, in https://www.youtube.com/watch?v=-3ui5Eu33FA
A alvorada dava sinais de vida. A custo, a luz timorata varria a noite para as alfombras do horizonte. E, todavia, a lua persistia. Ia ser presença total naquele dia. Cheia, imponente, continuando a emanar uma luz poderosa, o mesmo luar que enfeita as noites quando a escuridão se amedronta diante do luar intenso.
A lua concorria com o sol que, a pulso, ia ocupando um lugar no céu, dando patente a um dia soalheiro. Uns olhos que estivessem atentos, uns olhos que não se limitassem, acabrunhados, a palmilhar os centímetros de chão à sua frente, veriam o insólito de duas circunferências irradiando cada uma luz à sua maneira. As duas a uma distância de segurança, em sinal de respeito recíproco. Se a lua concorria com o sol, tornando-se dele rival por um quinhão do tempo que não era dela (mandam as convenções e os manuais da ciência), não havia nenhum propósito de açambarcar ao sol um território seu. A lua quis, naquele dia de sortilégios, espreitar para a Terra enquanto era banhada pelo sol. Sempre tivera essa curiosidade. Queria ser penhor, por um dia que fosse, da claridade que provinha do sol; queria ser como nós, habitantes do planeta, quando levitamos por efeito de um dia banhado pelo sol.
A lua manteve-se no seu canto, rodando no firmamento na exata medida da trajetória rotativa do sol. Ao contrário do sol, que se iça das funduras escondidas atrás do horizonte e desenha um arco pelo céu até desmaiar ao entardecer, a lua conseguiu manter-se altaneira. A lua era o promontório de onde divindades, caso existissem, tinham palco de excelência para vigiarem os mortais. Quando as cores do ocaso fundiram o dia com a penumbra, dando lugar à noite que, sem pré-aviso, tomou posição, a lua soltou-se da iridescência solar e resgatou o fulgor.
Naquela noite, a lua estava maior. Sentia-se maior. Intensa. Aprendera a ser luz ainda mais intensa com o sol. Naquela noite, a noite mal o fora. Pois durante o dia, a lua não achou horizonte onde se deitar. E quase ninguém deu conta. Pois se desse, seriam maiores com a lua maior.

28.6.16

Caixa de Pandora

My Bloody Valentine, “Soon”, in https://www.youtube.com/watch?v=w4-5gHR3_Kg
Estava-se à espera que a primeira palavra a vir à superfície fosse labirinto. É o retrato vivo de uma caixa de Pandora que acabou de se abrir. Um emaranhado de caminhos, sucessivas encruzilhadas que se desmultiplicam numa outra série de caminhos, e o adivinhar a deitar-se a jogo à falta de um mapa esclarecedor.
Havia quem receasse caixas de Pandora. Era pelo medo fabricado depois de muitas interrogações desertas, órfãs de resposta. Era pelo pavor da incerteza e que a incerteza degenerasse em caos, com a inorganização consequente. Não lhes era dado ver que a caixa de Pandora podia ser uma oportunidade a desabotoar-se vagarosamente. Que o embaraço fosse a ordem dominante antes de a caixa de Pandora ser aberta. Fazia sentido que ao abrir-se a caixa de Pandora a impressão fosse a desordem. Talvez só o fosse por contraste com o que se supunha ser uma ordem estabelecida, os usos e costumes a que as pessoas estavam habituadas e, tementes de uma mudança, a quadrassem com o pânico que vem depois de um abalo telúrico.
Faltava desassombro para julgar a caixa de Pandora como uma reinvenção do palco que os pés logravam. Uma oportunidade que se oferecia por diante. Apesar de serem um desafio os tempos vindouros, no imperativo de reorganizar a teia rompida pela imersão na caixa de Pandora. Teriam de arranjar lucidez para não se intimidarem com a teia multiforme em que mergulhavam mal os corpos tomassem lugar na caixa de Pandora. Um desafio não é uma calamidade. A menos que, habituados à letargia do habitual, estivessem receosos da reinvenção das coisas ao não darem conta de como atávica se tornou a ordem desafiada pela caixa de Pandora. Tudo o que se exigia, era abertura para um novo olhar.
O labirinto dentro da caixa de Pandora era uma profusão de caminhos entrelaçados. Não havia mapa feito, nem se pressagiava que houvesse um feito à medida das carências nos tempos que vinham a seguir. E nem assim os mais desassombrados se transtornaram com a abertura da caixa de Pandora. Estavam aquartelados numa minoria, quase segregados. Não vacilaram. Mergulharam na caixa de Pandora e trataram de congeminar uma maneira de lhe tomar o leme.