Márcia
e J. P. Simões, “A pele que há em mim”, in https://www.youtube.com/watch?v=LrNz37uc7kc
A pele sem serventia, corroída pelo gasto do tempo,
perde-se em escamas mortas. A pele gasta é um estorvo menor no corpo que teima
em não se cansar. Mas a pele, por ser gasta, mostra um cansaço. Mostra-se frágil,
incapaz de derrotar os elementos a que se expõe. E a pele fica em escamas,
libertando-se da pele mais dura que foi o leito onde se deitou.
A tão fina pele é uma capa delicada. Mas não sela sinónima
fragilidade quando se olha para o corpo onde a pele encontra território. Debaixo
de uma camada de pele há outra já em fruição, preparada para substituir, e sem prejuízo,
a pele senescente. Teríamos de perguntar aos cientistas quantas camadas de pele
comporta a pele antes de ceder passagem à carne irrigada pelo sangue. Teríamos
de lhes perguntar: para saber se todas essas camadas de pele comungam da fragilidade
da fina pele à superfície. Ou se, pelo contrário, as peles interiores são mais
rijas para se protegerem dos elementos mercê das camadas que estão à sua
frente, em intermediação entre as mais fundas camadas de pele e as que assomam à
fachada do corpo.
Uma pele em escamas não é um grito lancinante do corpo. É
o corpo a tratar de se acrisolar. A pele que se gasta tem um prazo de validade
mais curto do que o corpo restante. É um adereço – dir-se-ia, não fosse a pele
o manto protetor que habilita o corpo a tolerar os elementos hostis. Se fôssemos
como os animais que mudam de pelo, teríamos de esperar pela primavera para
observar a pele em escamas a chamar uma camada sucessiva ao seu lugar. Não temos
de tropeçar em rolos de pelo caídos pelo chão; vemos a pele em escamas e
sabemos que ela deixou de ter serventia, depondo-se voluntariamente na
sepultura onde jazem todos os lixos, à espera que a camada seguinte responda ao
chamamento do corpo.
A pele que se gasta não é um estertor. É renovação. Sinal
de que nem tudo o que se perde num instante é condenação imorredoira à
impossibilidade da existência. Às vezes, existir exige a reinvenção da pele. Da
pele que perdeu a sua serventia.
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