3.6.16

Carrinhos de choque

Sigur Rós, “The Rains of Castamere”, in https://www.youtube.com/watch?v=w3QW8PVyyNM    
Quem disse que a fantasia não é possível? Quem assegurou que apenas podemos ter os pés ancorados ao chão firme, sem janelas abertas ao que muitos acham ser o degredo das ilusões?
Os devaneios não ficam sitiados pela poderosa espessura da realidade. Se fosse ao contrário, os sonhos eram proibidos. Não contavam as efabulações que dão chama à literatura e à poesia. Não ganhavam cor as contravenções do real, para desespero dos tutores da realidade que tanto gostariam que ela fosse um pasto sereno para uma multidão obediente. Mas esses tiranetes não sabem como são impotentes contra as extravagâncias da criatividade são o húmus de palcos imaginários, palcos sem chão tangível e, todavia, palcos apetecíveis – talvez os palcos mais apetecíveis.
Há dias aprendi com a minha filha, enquanto nos divertíamos nos carrinhos de choque. Peguei no volante e as memórias foram lá atrás, resgatar a destreza ensaiada quando, adolescente, eu e os meus amigos achávamos que proeza era conduzir sem chocar com outros carrinhos. A minha filha chamou-me à terra ao ver a monotonia da função. Disse: “isto é engraçado se fores contra os outros carrinhos de choque.” Estava coberta de razão. Assim como assim, chamam-se “carrinhos de choque” por alguma razão. E se, enquanto conduzimos na estrada, temos as parangonas da prevenção rodoviária embebidas no subconsciente, evitando o mais leve contacto com outros veículos, nos carrinhos de choque temos o lugar próprio para a vingança do quotidiano, para fugirmos da tirania da realidade.
Os outros que coincidem na corrida dos carrinhos de choque são vítimas amigáveis da fúria acidental que se deposita nos dedos que seguram o volante. Chocamos contra eles e mantêm aquele sorriso pueril de quem parece que encontrou palco para recuperar um pedaço da infância (ou da adolescência). Fugimos da rotina. Em linguagem popular, “desopilamos”. Trazemos para a arena – a pista dos carrinhos de choque – delírios que não podemos praticar nas estradas e nas ruas das cidades. Confirmando que há sempre a possibilidade de montar um palco, com chão tangível, para traduzir as ilusões em coisa palpável. Nem que seja para sabermos que o tempo não é monopólio da bruta realidade.
E, também, para concluir que aprendemos com as crianças.

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