20.6.16

Dúvida metódica


This Mortal Coil, “Gathering Dust”, in https://www.youtube.com/watch?v=8cCo5CL4NU0
Papeis amarrotados pelo chão, numa desordem que exsuda desinspiração. Formular um pensamento que dê mote a um texto – é a tarefa que está a ser teimosamente impossível. Fecha os olhos. À procura de paisagens que desfilem no palco imaginado diante dos olhos. Pode ser que alguma paisagem seja o húmus de uma ideia que mereça ser vertida em papel. Os dedos entrecruzam-se depois de a mão direita pousar a caneta. Os dedos tateiam os poros da madeira que é a cama da mesa. Pode ser que os dedos absorvam uma inspiração qualquer das entranhas da arcana madeira. Os olhos continuam fechados. Apascentam memórias. Passeiam filmes de outrora. Paisagens físicas de lugares distantes, visitados ou vistos em imagens de outros. O pensamento continua um embaraço. Não consegue cerzir os pontos que impõem coerência a um conjunto de orações. De repente, um amontoado de palavras sai de jato para o papel. Relê-as. Outra vez. E mais outra. Não ficou convencido. À terceira leitura, aquelas três frases, que podiam ser o ponto de partida para o ensaio que teimou para aquela altura, não faziam sentido. Era prosa quase ininteligível. Tem de proceder como nas tentativas anteriores: amarrota o papel e deita-o para o chão, fazendo companhia aos outros papeis párias desarrumados no chão da sala. A impaciência começa a causar dores de barriga. Uma ligeira cefaleia vem acompanhar o mau estar. Sabe que escasseiam as probabilidades de juntar umas palavras com sentido: em efeito de cascata, quanto mais ensaios decaírem em forma de cadáver (por serem atirados para o chão, antes de virem a engrossar o lixo), mais se impacienta a inspiração; menos chão haverá para ajuramentar as palavras certas numa prosa que se devolva algum sentido. Para agravar, a hora adiantada já é um começo de convite ao sono. Outro imponderável que não é congruente com a inspiração. Talvez seja melhor adiar a tarefa para o dia seguinte. Ou para um dos dias que vier a seguir, sem forçar a inspiração, sem a forjar para dela não resultar prosa contrafeita. Foi a primeira vez, nas derradeiras horas, que conseguiu vencer uma dúvida metódica. Ao menos, podia dormir com algum alívio.

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