Linda Martini, “Volta”, in https://www.youtube.com/watch?v=nTM4mC40bEw
Tinha idade de sobra para estar reformado. O velho pescador,
todavia, persistia na mesma rotina. Quando o barco não podia ir ao mar, porque
o mar não estava a preceito, ou porque era dia de descanso da tripulação,
consagrava o tempo a reparar as artes de pesca.
Absorvido pelo seu mundo, não era de grandes falas. Perdera
dois filhos em naufrágios de embarcações de pesca, em anos sucessivos. Ouvia-se
dizer que a consorte, mergulhada em profunda tristeza com a perda dos filhos,
emalara os pertences e, sem aviso, fugira para paradeiro incerto. (Línguas mais
viperinas e dadas à especulação apostavam que a mulher se perdera de amores e
fugira de um marido sem sensibilidade.) Não era de admirar que o pescador fosse
um homem fechado, com o sorriso destreinado, sem interesse para conversas com
os seus semelhantes.
Em tempos, alguém perguntou porque insistia em ir para a
faina se o mar trazia más recordações, se o mar roubara os filhos. Impassível, contrapôs
que era uma homenagem aos filhos. Que ia ao mar porque sabia que no mar, que
nunca devolvera os corpos dos filhos, estava na presença dos filhos. Alguns pescadores
juravam que ouviam as preces do pescador mais velho a meio da noite, depois de
encerrada a faina ao puxarem as redes de volta à embarcação. O velho pescador ficava
a pé quando os outros, já extenuados, se recolhiam aos beliches. Precisava da
solidão para se inteirar do estado do mar. Para conversar com as almas dos
filhos que estavam no mar inteiro. Não eram preces; era o pescador a meter a
conversa em dia com os filhos que não estavam ausentes quando ele estava no mar
distante.
Quem se abeirava do velho pescador impressionava-se com
os olhos embotados. Uns olhos que se metiam fundos na cavidade que era seu
lugar, como se estivessem perdidos na profundeza de um olhar que abonava a distância
do velho pescador de tudo o que fosse terreno. De tudo o que considerava
mundano.
Contrariando a opinião que dele tinham os que nele
tomavam atenção, não se considerava um homem só. O mar era a melhor companhia. Onde
sabia estar à altura da imensidão do mar. Em terra, era peixe fora de água. Malditos
dias de descanso – remoía em silêncio o velho pescador, enquanto tornava mais
fundo o olhar embotado.
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