10.6.16

Hipótese


P. J. Harvey, “A Place Called Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=_m2NyS3IDjE
Resguarda o lenço de linho. Deixa-o pendido sobre o estendal, mesmo que esteja de chuva o tempo. Quando for tempo de o lenço ter a sua serventia, dobra-o impecavelmente em quatro e guarda-o numa gaveta (numa das gavetas onde se guardam as coisas para estarem acessíveis). Limpa o suor do rosto. Passa o dorso da mão pela testa, como se este afago fosse a caução necessária para adormecer as importunações. Estende a mão à alma compungida. Não parece que esteja a fazer caridade. Talvez seja apenas um modo de mitigar a consciência, convencido que praticou um ato caritativo, o destinatário provavelmente a sentir um alívio momentâneo. Refreia as lágrimas que não têm causa aparente; pode ter sido uma primaveril irritação cutânea, mesmo no dealbar dos olhos, a derramar as lágrimas. Será que as lágrimas são salgadas, como vem no poema aclamado? Não experimenta. Desvia o pensamento. Sobram outras hipóteses mais verosímeis, mais utilitárias, por testar. Deixa o lenço de linho perdido nas funduras de um bolso das calças. Das calças que estão em preparos de lavagem, na antecâmara da máquina de lavar. Só quando a máquina devolveu a roupa lavada se lembrou do lenço de linho perdido no bolso das calças. Mete a mão no bolso. O lenço está esfarrapado. Perdeu serventia. “Também não interessa”, convence-se, em forma de resignação. O lenço já não tem procura. As lágrimas ficaram enxutas no rosto imperturbável. Como se houvesse uma transfiguração e ele tivesse abdicado de alguma da sua humana condição. Já não poderia praticar a bondade. A começar por si mesmo. Agora estava por sua conta. E por conta da selva sem regras que era seu habitat. Não haveria de vir grande mal ao mundo. Do lugar de onde vinha, as regras eram letra morta. O lenço de linho ajudava a amparar os esteios das regras infecundas. E ele, na frieza de um punhal cortante, olhava com impassibilidade para as promessas sussurradas. As hipóteses nunca tinham deixado de ser o que sempre foram. Hipóteses.

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