31.1.17

Demanda


Teho Teardo & Blixa Bargeld, “Ich Bin Dabei”, in https://www.youtube.com/watch?v=GKZl81lZTmI    
O céu range os dentes, tal o estrepitoso troar que parece emanar das suas entranhas. Alguns clarões acendem-se na penumbra total, traduzindo uma centelha luminar que quer avisar da efemeridade da penumbra. Nem tudo é da cor das coisas malditas. Um coalescer matinal faz-se esperar, sem que a claridade fique à espera do seu tempo. Demora-se tanto a tempestade iridescente, que o olhar tardio, o olhar desipotecado pela insónia, está em êxtase com a cornucópia de efeitos luminosos que do céu irradiam.
É tudo pela metódica recusa da evidente normalidade. Tudo pelo estreito canal onde se revogam os malefícios habitualmente conotados com as coisas tidas como más. As coisas têm o seu avesso. Às vezes, estão escondidas no avesso. Não admira que as pessoas fiquem perplexas quando o avesso das coisas se revela, desmentindo o olhar compenetrado que as desestima.
Por isso, as pessoas mudam de impressão quando esbarram na antinomia da habitualidade. Talvez cresçam quando não esperassem por um qualquer laivo de madurez. Talvez isto queira significar que somos sempre portas abertas por onde têm entrada as inesperadas consequências dos avessos. Não adianta meter grilhos às portas, que o caudal abundante das coisas no seu avesso trata de as esventrar. E depois, entre o aturdido e o assoberbado, depois de mudados os ferrolhos das portas, as pessoas admitem as cores inusuais, as combinações improváveis de palavras, um mundo novo à espera de ser experimentado.
Corrompidas as traves do arrependimento, ensacadas as baias onde tinha provimento o hálito conservador, o tempo por diante é penhor de uma demanda constante. As páginas preenchem-se com palavras arrancadas ao estertor, com palavras que dantes seriam impossíveis, palavras produto de um parto penoso. As pessoas vestem-se do avesso que desconheciam. Até intuírem, tempos depois, que o avesso se tornou bitola exacerbada e que precisam de se reinventar por dentro de um novo avesso que vier a ser desembainhado.
Sem a demanda permanente, sobra a acomodada febre que serve de fermento à inércia. A demanda irreprimível é o luto que derrota a inércia. Um luto muito apreciado por estes lugares.

30.1.17

Passagem de nível


Bonobo (ft. Rhye), “Break Apart”, in https://www.youtube.com/watch?v=vhhkk69CxXc    
À medida da empreitada atual, aqueles eram preparos pueris. Era como se fosse preciso trepar a vedação para chegar ao outro lado da linha por onde passava o comboio. Tarefa proibida, se não fosse feita através da passagem de nível – e quando a cancela estivesse desembainhada. Os corajosos não teriam tais preparos: ousariam avançar sem hesitação, que o tempo foge por entre os dedos.
Pensava nisto enquanto, de olhos fechados e com o motor do carro desligado, esperava pela sua vez à frente da passagem de nível. A composição estava atrasada. Já se passara tanto tempo que, não tardava, os olhos encerrados dariam lugar a um módico de sono. Podia ser que caísse no sono e que viessem curtos, mas retemperadores, sonhos. Ou aquela impressão extravagante, em plena véspera do sono – ou talvez já dentro do primeiro ato do sono – quando se soerguem pensamentos que não fazem sentido, palavras retiradas do contexto, pessoas que não têm existência tangível. Paisagens oníricas que, quando são interrompidas por um ruído exterior, revelam que o risco do sono esteve a ser pisado e um dos pés já tinha sido atirado para dentro dele (sono).
O silêncio continuava a imperar. Não havia sinal do comboio e a passagem de nível continuava a travar o trânsito. Um homem apressado, acabado de chegar de bicicleta, não quis testar a paciência. Olhou para ambos os lados e, em não havendo sinal de comboios, montou na bicicleta e ensaiou pedaladas firmes. Do outro lado, a idosa que estava no carro imediatamente atrás da passagem de nível acenou em tom de reprovação. Tartamudeou umas palavras – adivinhou: seriam para admoestar o afoito ciclista, não tivesse o homem ido à sua vida.
A passagem de nível precata as pessoas de serem apanhadas em falso pelo comboio. (Era o momento do lugar-comum do dia, talvez a ressonância sono que arranhava as pálpebras.) Havia ali comboios que passavam a alta velocidade. Dizia-se, a quase duzentos quilómetros/hora. A essa velocidade, as distâncias entre a composição e o lugar onde se está são sempre ardilosas. Mandavam as convenções: mais vale a distância de segurança e encerrar as cancelas com antecedência. Nem que fosse só para conferir razão à senhora idosa que continuava com ares de poucos amigos a reprovar a manobra do ciclista intrépido que tinha ido à sua vida.
Tarde, o comboio acabou por passar. As ignições dos automóveis silvaram na exata medida da impaciência de quem esperou tanto tempo. Assim que passaram os primeiros carros, começou a troar a sirene que pré-avisava a chegada próxima de outro comboio e, portanto, o próximo fechamento da passagem de nível.
Estava um trânsito danado de comboios, àquela hora. Valia-nos a passagem de nível, a companhia de seguros dos transeuntes que quisessem passar de um lado para o outro da linha de comboio.

27.1.17

Espelhos-fronteira

Sonic Youth, “Teenage Riot” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=yYApTOv6JXk    
A planície segue o caminho, escorreita, sem aparente paradoxo. É como se as imagens do tempo aparecessem suspensas, pois parece que a paisagem nunca mais acaba. No céu, uma ou outra nuvem rompem a rotina. Apetece parar um pouco, fazer uma intermissão na viagem para deixar alguns pensamentos viajar desde o sopé de um miradouro vindo do nada.
Pensamentos que trespassem a estiagem em que se transformou a viagem. Dir-se-ia que já durava há horas e horas a fio, com o ardil da planície que não se transfigurava. Pensamentos que se desafiassem a si mesmos. Indagando os espelhos que se amontoavam no horizonte e onde estavam recolhidos os fragmentos transcendentes, os fragmentos perguntados ao tempo pretérito. Os espelhos acenavam ao longe, embaciando a claridade do sol que, àquela hora, começava a diária decadência do ocaso. Os espelhos ciciavam as imagens retidas na memória e devolviam interrogações. Sobre esses instantes e sobre o seu significado, sobre as palavras que foram ditas, sobre as decisões alinhavadas pela vontade – até as perguntas menos oportunas, as que desafiavam as certezas das decisões embebidas nos espelhos.
A certa altura, os espelhos (que adejavam a meio caminho entre o chão e o céu) começaram a serpentear, talvez arquejados por um vento que veio do nada em presságio da penumbra que não tardava. Quando a penumbra viesse cobrir o céu, os espelhos ficariam desprovidos da sua função. Seriam espelhos-fronteira: saber-se-ia da sua existência, tão sumptuosos a povoar a paisagem, mas não se saberia o que traziam por dentro. Não se saberia se eram representativos do pulsar de quem os testemunhava, ou se eram apenas imagens possuídas por outros. Fosse como fosse, com a noite seriam baços os espelhos. Seriam fronteira. O limite ao qual ambição nenhuma consegue o mérito de franquear. Porventura, janelas ainda fechadas sobre desígnios a experimentar no tempo por destapar.
Antes que fosse tarde – e antes que uma qualquer demência fortuita irrompesse, ficando refém da noite à espera do impossível – era melhor voltar à viagem e postergar os espelhos-fronteira. Até que o tempo, o tempo devido, viesse em seu socorro.

26.1.17

Sem passar pela casa da partida


Love and Rockets, “Ball of Confusion”, in https://www.youtube.com/watch?v=NcfXWtI7ML0    
Conjeturas intemporais: peões que se alçam ao papel de generais, na indisfarçável epopeia que fazem corresponder a sinecuras que protestam ocupar. Querem privilégios a condizer. As regras liquefeitas, que as regras são aplicadas aos outros – os que não podem certificar as prerrogativas exercidas em correspondência com tão importantes alcavalas.
Querem que se faça tábua-rasa às leis tabuladas, pois para isso também servem as distintas patentes ostentadas à lapela (nem que seja apenas em sentido figurado). E depois, se preciso for, aparecem em público ungidos (ou ungindo-se a si mesmos) como máximos zeladores das regras que caucionam igual tratamento de todos perante as regras tabuladas. Na hora certa, quando precisam do tratamento de exceção, em que exigem continuar no tabuleiro do jogo sem terem de passar pela casa da partida, insinuam-se, gelatinosamente, a favor do tratamento de exceção: “Ninguém tem de saber, isto fica entre nós”. “Vá lá, faça o jeito.” E se o interlocutor acena com intransigência – afinal sem o ser: trata-se apenas de cumprir o preceituado – são capazes de invocar recursos a instâncias superiores. Em jeito de ameaça, para desimpedir a intransigência do interlocutor: talvez ele se intimide com a possibilidade de intercedência a uma figura superior e faça a tábua-rasa insistentemente apelada.
A páginas tantas, o interlocutor apela à teimosia. Não cede, nem perante a ameaça de recurso à figura superior. Não adianta querer seguir no jogo sem passar pela casa da partida. Se todos têm de lá passar, não podem os que se acham ungidos com privilégios usurpar um tratamento de exceção. Assim como assim, eles não escapam ao todo de que todos fazem parte. Habituados a um ecossistema de compadrio e a favores que pagam favores que por sua vez pagam outros favores, os especiais de corrida que não querem passar pela casa da partida esboçam ira. Julgam que é o recurso derradeiro para não passarem pela casa da partida.
Não adianta. É pior: as ameaças veladas e a ira não desobstruem a intransigência, não são o expediente para deitar mão no expediente solicitado. Não adianta: a páginas tantas, os putativos generais que se acham merecedores de um tratamento de exceção correm o risco de serem metidos numa ETAR.