9.1.17

O sangue das árvores

In http://www.1freewallpapers.com/natural-park-autumn-red-leaves-autumn-scenery/pt
Havia uma altura do ano em que as árvores se desprendiam num manto avermelhado, cobrindo o chão com um tapete que parecia um lago de sangue. Muitas pessoas diziam que as árvores sangravam. Poucas propunham que não era sangue, que eram lágrimas vertidas pelas árvores. Por mais que a maioria chamasse a atenção que as lágrimas não são vermelhas; por mais que a maioria não certificasse maus eventos que trouxessem lágrimas às árvores – estes poucos não transigiam com as costuras da sua teoria.
Era lugar-comum, portanto: o tapete carmim nas imediações das árvores era do sangue que elas vertiam quando se chegava àquela altura do calendário. As árvores portentosas despiam-se da folhagem, deitando no calendário um quadro bucólico que só acontecia naquele lugar. Numa transfiguração meteórica, as folhas decadentes viravam-se do avesso e o carmim tomavam conta delas. Num progressivo desmaio de cor, as folhas ganhavam rugas e maceravam na opulência tardia. Diziam os mais atentos, estas árvores espadanavam grandiosidade quando a sazonalidade ditava a decadência da sua folhagem. No resto do ano, eram árvores como quaisquer outras. Numas alturas, com a folhagem viçosa. Após as folhas caducas, no anonimato que são as árvores nuas.
A opulência era efémera. Coincidia com um singelo dia: a degradação de cores, no progressivo desmaio, interrompia-se repentinamente; como se tratasse de um súbito fulgor, de um volteio final para ficarem emolduradas na memória dos passeantes, as folhas ganhavam um inusitado tom carmim, ainda mais garrido do que o verde viçoso que determina a primavera. Os populares certificavam: era do sangue derramado pelas árvores. Ao verem-se despojadas da sua folhagem, o sangue derramado preparava as árvores para os rigores do inverno (porque, exangues de sangue, conseguiam hibernar e meter um parêntesis enquanto vinham as neves do inverno).
A minoria mantinha, teimosamente, outra teoria: eram as lágrimas das árvores, cientes que o breviário outonal iria expô-las ao demorado inverno. Eram de uma espécie insólita: vertiam lágrimas carmim, para marcarem a diferença entre elas e as outras espécies que conseguem derramar lágrimas. Mas estas eram pessoas que professavam uma trágica desconfiança no inverno.

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