Lisa Gerrard & Pieter
Bourke, “Sacrifice”, in https://www.youtube.com/watch?v=BoXsxYf2UMA
O pedaço superior, apenas. O resto
está escondido nos escombros resguardados dos olhos alheios que podiam ficar magoados
com tamanho despropósito. Ou é como se, com o bafo, um espelho fosse propositadamente
embaciado e o espelho, normalmente uma medida da transparência, ficasse baço ao
exterior. Dito de outro modo (em tentativa de formulação talvez mais elegante):
o que navega sobre o espelho de água é um pequeno mostruário do resto; e, muito
provavelmente, um mostruário que não é representativo do resto, pois o espelho
de água é denso, imperscrutável, a água lodosa talvez explicada pela contaminação
de todos os icebergues que flutuam à superfície. A alvura dos icebergues é uma
insinceridade: dessa alvura medra a escureza que atordoa a água.
Voltando o jogo do avesso: será
deselegante presumir que a verdadeira essência do ser é aquela que se consegue
esconder do olhar alheio. Primeiro, porque se presume que a intenção ardilosa é
quintessência, quando nem todos são o quadro vivo de uma falácia em ação e em
intenção. Segundo, mesmo que a parte submersa seja a mais notória, não é medida
capaz para ilustrar uma ilação: pode representar área maior a parte submersa,
mas não ser aquela parte em que fundeia o ser. Mesmo que, em estando submersa,
se considere aceitável a analogia com os esteios, pois os esteios também se
hasteiam numa parte oculta do olhar.
A metáfora do icebergue é uma diversão
para atirar o observador para a desatenção. Diz-se que dois terços de um
icebergue não estão disponíveis ao olhar (a menos que emparelhe com equipamento
de mergulho e deambule pelas águas profundas) e que, nessa medida, a parte mais
importante do icebergue é a que está oculta do olhar. Se assim fosse, todos éramos
atores, por definição e sem válvula de escape. Mesmo para os que têm propensão
para o ardil dos palcos, não é a metáfora do icebergue que confirma a propensão.
A explicação mais convincente é outra – e que agora não interessa esquartejar.
Somos icebergues por natureza. Não
por querermos esconder dos outros a essência do que somos, mas porque somos essência
tão imperial que não há como a mostrar aos demais. Ou, mesmo que houvesse algum
interesse (nem que fosse pelo capricho da ciência) em tornar essa parte acessível,
depressa os curiosos findariam a sua demanda por manifesto desinteresse da
parte revelada. Até prova em contrário, somos icebergues. Ainda bem.
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