20.1.17

Icebergue


Lisa Gerrard & Pieter Bourke, “Sacrifice”, in https://www.youtube.com/watch?v=BoXsxYf2UMA    
O pedaço superior, apenas. O resto está escondido nos escombros resguardados dos olhos alheios que podiam ficar magoados com tamanho despropósito. Ou é como se, com o bafo, um espelho fosse propositadamente embaciado e o espelho, normalmente uma medida da transparência, ficasse baço ao exterior. Dito de outro modo (em tentativa de formulação talvez mais elegante): o que navega sobre o espelho de água é um pequeno mostruário do resto; e, muito provavelmente, um mostruário que não é representativo do resto, pois o espelho de água é denso, imperscrutável, a água lodosa talvez explicada pela contaminação de todos os icebergues que flutuam à superfície. A alvura dos icebergues é uma insinceridade: dessa alvura medra a escureza que atordoa a água.
Voltando o jogo do avesso: será deselegante presumir que a verdadeira essência do ser é aquela que se consegue esconder do olhar alheio. Primeiro, porque se presume que a intenção ardilosa é quintessência, quando nem todos são o quadro vivo de uma falácia em ação e em intenção. Segundo, mesmo que a parte submersa seja a mais notória, não é medida capaz para ilustrar uma ilação: pode representar área maior a parte submersa, mas não ser aquela parte em que fundeia o ser. Mesmo que, em estando submersa, se considere aceitável a analogia com os esteios, pois os esteios também se hasteiam numa parte oculta do olhar.
A metáfora do icebergue é uma diversão para atirar o observador para a desatenção. Diz-se que dois terços de um icebergue não estão disponíveis ao olhar (a menos que emparelhe com equipamento de mergulho e deambule pelas águas profundas) e que, nessa medida, a parte mais importante do icebergue é a que está oculta do olhar. Se assim fosse, todos éramos atores, por definição e sem válvula de escape. Mesmo para os que têm propensão para o ardil dos palcos, não é a metáfora do icebergue que confirma a propensão. A explicação mais convincente é outra – e que agora não interessa esquartejar.
Somos icebergues por natureza. Não por querermos esconder dos outros a essência do que somos, mas porque somos essência tão imperial que não há como a mostrar aos demais. Ou, mesmo que houvesse algum interesse (nem que fosse pelo capricho da ciência) em tornar essa parte acessível, depressa os curiosos findariam a sua demanda por manifesto desinteresse da parte revelada. Até prova em contrário, somos icebergues. Ainda bem.

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