11.1.17

Maravilhas terrestres


Sigur Rós, “All Alright”, in https://www.youtube.com/watch?v=kUvgg4mvmb0    
Não havia nada que importunasse o tempo. Não havia maneira de haver sombras a mestiçar o dia. Não havia forma de combinar o negrume que agendava episódios com o tempo passante. Estava tudo bem. Sempre tudo excessivamente bem. Com um sorriso espontâneo no rosto. Como uma forma de ser que irradiava um estado de espírito positivo, um contagiante positivismo que chegava para dissolver todos os pesares que pudessem meter-se à frente dos olhos.
Havia sempre uma palavra afirmativa, sobretudo naqueles momentos em que outros atravessavam as suas trevas. Era guardião do prontuário das coisas estimáveis. Que houvesse gente a lembrar-se, ninguém o vira refém de lamentos, ou mergulhado em melancolia, ou tributário de um arrependimento esparso, ou com o rosto descosido do sorriso desarmante que era imagem de marca. Ninguém testemunhara tais estados de alma. E, todavia, tamanha embriaguez de positivismo fazia macerar a desconfiança.
Um dia, alguém perguntou se sabia o que era a tristeza. Hesitou, demoradamente. Perplexo, parecia não saber o que responder – ou parecia temer responder em coro com o sentido da interrogação. Noutro dia, quase como se estivesse combinado com o anterior desconfiado, outro conhecido perguntou se sabia estimar assim tanto as coisas positivas à volta dele se não travou conhecimento com as coisas que são a sua antítese. Completou o raciocínio, este interrogador: para dar valor a algo, é preciso saber o sabor do seu contrário.
Continuava a fugir das demandas sobrepostas ao incómodo. Continuava a meter pelas vielas esconsas da negação. Preferia mostrar a máscara do seu disfarce. Irradiar a exultação ardilosamente contagiada, pois uma multidão inteira ficava boquiaberta (no sentido positivo do termo) ao dar de caras com tanta positividade concentrada numa só pessoa, dias e dias consecutivos, sem interrupção. Os desconfiados – e, note-se, ao mesmo tempo confusos com a suposição de tamanha possibilidade, talvez até não escondendo um naco de inveja – ditavam para a ata do desassossego a ardilosa condição excessivamente positiva. Diziam: “não é possível, pura e simplesmente não é possível ser sempre assim”. E admitiam que, atrás de tanto logro, se barricasse a pessoa mais melancólica do mundo inteiro.

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