23.1.17

O ator perdido


Interpol, “Rest My Chemistry”, in https://www.youtube.com/watch?v=2uOyfqVuonQ    
Estava tudo preparado. O guião. A equipa de atores. Os ensaios, quase todos feitos. A encenação a preceito. O palco montado. As datas para levar a peça à cena. O público angariado (funcionara o passa a palavra e a publicidade em jornais).
Na véspera, o ator principal desapareceu. Sem pré-aviso (que os desaparecimentos deste jaez não têm aviso prévio). Não apareceu no último ensaio. Deixou de responder aos telefonemas. Não adiantava perguntar aos mais próximos acerca do seu paradeiro, que o ator sempre fora uma personagem tresmalhada, um eremita, sem amigos nem família. Foram em vão as tentativas de quem bateu à porta da sua casa. O encenador estava em pânico. Sem o ator, a peça não fazia sentido – foi a sua reação imediata. Dela era o ator a sua peça centrípeta. As restantes falas e as interações com os outros atores, tudo era instrumental à presença do ator principal.
Sobravam poucas horas até a peça subir a palco. O encenador não sabia o que fazer. Não queria dar o braço a torcer, não queria pensar em adiar a inauguração da peça. O tempo sobrante era pouco para arranjar substituto para o ator principal. Isso era impossível. O texto era denso e as falas do ator principal ocupavam quase dois terços do enredo. O mais importante estava por equacionar: a personagem incarnada pelo ator principal convocava um ator que soubesse incorporar a densidade narrativa da personagem. Esse ator seria obrigado a despir-se da sua individualidade, num processo grotesco, quase autofágico, de desmaterialização da personalidade. O encenador sabia que só havia aquele ator com estas características. Sabia-o, pois o processo de escolha do ator principal fora demorado e difícil.
A meio da noite em branco, descobriu a solução. A peça subiria à cena na data prevista. Sem o ator principal. Apenas com as falas dos outros atores. Releu o texto, dele extraindo as falas do ator principal. O enredo tinha um surpreendente sentido: era uma a metonímia das dores do mundo das pessoas que se afligem com as aflições das pessoas que se condoem com as dores do mundo, numa circularidade clara. Era como se, sem o ator principal, a peça se enovelasse em sucessivos palimpsestos, à medida que se sucediam as falas dos outros atores, sem o fio condutor do ator principal.
Afinal, o ator principal não era preciso para nada.

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