Interpol, “Rest My
Chemistry”, in https://www.youtube.com/watch?v=2uOyfqVuonQ
Estava tudo preparado. O guião. A equipa
de atores. Os ensaios, quase todos feitos. A encenação a preceito. O palco
montado. As datas para levar a peça à cena. O público angariado (funcionara o
passa a palavra e a publicidade em jornais).
Na véspera, o ator principal
desapareceu. Sem pré-aviso (que os desaparecimentos deste jaez não têm aviso prévio).
Não apareceu no último ensaio. Deixou de responder aos telefonemas. Não
adiantava perguntar aos mais próximos acerca do seu paradeiro, que o ator
sempre fora uma personagem tresmalhada, um eremita, sem amigos nem família. Foram
em vão as tentativas de quem bateu à porta da sua casa. O encenador estava em pânico.
Sem o ator, a peça não fazia sentido – foi a sua reação imediata. Dela era o
ator a sua peça centrípeta. As restantes falas e as interações com os outros
atores, tudo era instrumental à presença do ator principal.
Sobravam poucas horas até a peça
subir a palco. O encenador não sabia o que fazer. Não queria dar o braço a
torcer, não queria pensar em adiar a inauguração da peça. O tempo sobrante era
pouco para arranjar substituto para o ator principal. Isso era impossível. O texto
era denso e as falas do ator principal ocupavam quase dois terços do enredo. O
mais importante estava por equacionar: a personagem incarnada pelo ator
principal convocava um ator que soubesse incorporar a densidade narrativa da
personagem. Esse ator seria obrigado a despir-se da sua individualidade, num
processo grotesco, quase autofágico, de desmaterialização da personalidade. O encenador
sabia que só havia aquele ator com estas características. Sabia-o, pois o
processo de escolha do ator principal fora demorado e difícil.
A meio da noite em branco, descobriu
a solução. A peça subiria à cena na data prevista. Sem o ator principal. Apenas
com as falas dos outros atores. Releu o texto, dele extraindo as falas do ator
principal. O enredo tinha um surpreendente sentido: era uma a metonímia das
dores do mundo das pessoas que se afligem com as aflições das pessoas que se
condoem com as dores do mundo, numa circularidade clara. Era como se, sem o
ator principal, a peça se enovelasse em sucessivos palimpsestos, à medida que
se sucediam as falas dos outros atores, sem o fio condutor do ator principal.
Afinal, o ator principal não era
preciso para nada.
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