27.1.17

Espelhos-fronteira

Sonic Youth, “Teenage Riot” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=yYApTOv6JXk    
A planície segue o caminho, escorreita, sem aparente paradoxo. É como se as imagens do tempo aparecessem suspensas, pois parece que a paisagem nunca mais acaba. No céu, uma ou outra nuvem rompem a rotina. Apetece parar um pouco, fazer uma intermissão na viagem para deixar alguns pensamentos viajar desde o sopé de um miradouro vindo do nada.
Pensamentos que trespassem a estiagem em que se transformou a viagem. Dir-se-ia que já durava há horas e horas a fio, com o ardil da planície que não se transfigurava. Pensamentos que se desafiassem a si mesmos. Indagando os espelhos que se amontoavam no horizonte e onde estavam recolhidos os fragmentos transcendentes, os fragmentos perguntados ao tempo pretérito. Os espelhos acenavam ao longe, embaciando a claridade do sol que, àquela hora, começava a diária decadência do ocaso. Os espelhos ciciavam as imagens retidas na memória e devolviam interrogações. Sobre esses instantes e sobre o seu significado, sobre as palavras que foram ditas, sobre as decisões alinhavadas pela vontade – até as perguntas menos oportunas, as que desafiavam as certezas das decisões embebidas nos espelhos.
A certa altura, os espelhos (que adejavam a meio caminho entre o chão e o céu) começaram a serpentear, talvez arquejados por um vento que veio do nada em presságio da penumbra que não tardava. Quando a penumbra viesse cobrir o céu, os espelhos ficariam desprovidos da sua função. Seriam espelhos-fronteira: saber-se-ia da sua existência, tão sumptuosos a povoar a paisagem, mas não se saberia o que traziam por dentro. Não se saberia se eram representativos do pulsar de quem os testemunhava, ou se eram apenas imagens possuídas por outros. Fosse como fosse, com a noite seriam baços os espelhos. Seriam fronteira. O limite ao qual ambição nenhuma consegue o mérito de franquear. Porventura, janelas ainda fechadas sobre desígnios a experimentar no tempo por destapar.
Antes que fosse tarde – e antes que uma qualquer demência fortuita irrompesse, ficando refém da noite à espera do impossível – era melhor voltar à viagem e postergar os espelhos-fronteira. Até que o tempo, o tempo devido, viesse em seu socorro.

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