12.1.17

Carne e osso


Trentemøller, “Never Fade”, in https://www.youtube.com/watch?v=qg9lTXNYFZ4    
           Onde estão os constituintes da alma, o cais enraizado onde as mãos se agarram, as profundezas que são a cor pura da alma, a carne e o osso sem adereços, o poço tão fundo de onde se soerguem os nutrientes maiores? Onde se encontra a mais pura essência de tudo, o que não pode ser contaminado, as palavras peregrinas, o estado de alma em perfeita serenidade? Podemos ser uma versão despojada de emaranhados lamentos e pesares, desligada das telas mentais passadas, sem a obsolescência do tempo futuro?
            Em carne e osso, talvez. Sem as sucessivas camadas de verniz que denotam os fingimentos que, sucessivamente, se abraçam à pele. Podemos medir a espessura da carne e do osso? Temos medidas calibradas para o efeito? Talvez as sucessivas camadas de fingimento sejam um obstáculo; talvez já nem seja possível saber quem se é, se não a manta de retalhos sistematicamente edificada sobre as sucessivas camadas de verniz que recauchutaram a carne e o osso. E, nessa medida, talvez a carne e o osso sejam longínquos miradouros, a certa altura inacessíveis. Porventura, um oásis. Ou nem tanto: pois se a adulteração não corresponder a uma adulteração em sentido literal e for apenas o produto da madurez que se pespega, indagar pela carne e pelo osso, como matérias fungíveis da pureza, é uma cilada.
           Dirão: o verniz que se entesoura com o tempo que passa é uma adulteração, pois embacia a carne e o osso, que sofrem uma transfiguração. Não interessa. A pureza reclamada é uma invisível camada que deixou de ser tangível. É uma inutilidade. A carne e o osso que importam são os que estão à mostra, nem que sejam uma transitória fachada pronta a ser substituída por outra que venha a preceito.
        Ninguém tem um oráculo à distância das mãos. Não podemos saber se alguém diante de nós medra numa adulteração de si mesmo. Temos apenas a pessoa diante de nós. A carne e o osso visíveis. A carne e o osso que contam para a contabilidade das almas.

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