The Clash, “London Calling”,
in https://www.youtube.com/watch?v=EfK-WX2pa8c
Não parava de pensar na pressa que
temos para que o tempo passe depressa. Como se tivéssemos nascido destinados à
morte (isso é indeclinável), mas depressa nos cansássemos de viver e o tempo
fosse por nós desfolhado com o propósito de mais depressa se exaurir, abrindo
as portas da morte. Era absurdo. (Como se não fosse bastante o absurdo, tinha
pavor da morte.) E, todavia, tão empenhados nas empreitadas encavalitadas no
dorso dos planos (e daquelas que surgiam sem contar, mas que contavam para as
contas que interessam), numa anestesia venal, nem percebemos que o tempo se
esvai e acabamos por não ter mão nele.
Não adianta tirar invenções do
alfobre: o tempo corre na sua marcha, a que é ditada pelo imperativo das
convulsões temporais que estão acima da vontade humana. Debaixo dessa capa
indelével, soergue-se um tempo com diferentes ramificações para cada pessoa. É reconhecível
que o tempo tem diferentes diapasões consoante o que as pessoas decidem fazer
com ele. O homem velho, propositadamente vagaroso, confessara na véspera:
deixou de apressar o tempo, agora que se embebera no tempo e tudo se congeminava
numa lentidão devidamente processada. Era como se o tempo viesse às mãos do
idoso. Contrariando as imagens feitas, o idoso conseguia domar o tempo, detê-lo
entre os dedos extasiados com a inversão dos termos convencionados.
Não podia recusar a convocatória do
tempo pretérito, nesta altura em que o significando do tempo ao longo do tempo
era hipotecado. A viagem continuava a parecer interminável e a urgência em
arranjar ardis para matar o tempo (sem que isso soasse a contradição com a
ideia que viera ao pensamento) era inadiável. Ao menos, agora a paisagem
diferia. Talvez por voltar a viajar de comboio (o meio de transporte
privilegiado na maior parte da viagem), a paisagem mudava constantemente. Ajudava
a compor os pensamentos. Ajudava a compaginá-los com recurso ao armário das
recordações. Se havia algo que admitia, é que na maior parte do tempo empurrara
o tempo para a frente com as mãos ávidas em chegar à posteridade. O tempo presente
era, na maior parte dos casos, um vazio. Era entendido como um obstáculo ao
conhecimento do tempo futuro. Tinha sempre pressa em chegar ao amanhã, e ao
depois do amanhã, e assim sucessivamente. E sempre que chegava o dia demandado
na véspera, logo se esgotava a sua utilidade. O provir é perpétuo – toda a
gente o sabe. O adiamento do tempo na exata medida da escala do tempo futuro,
estando ele de atalaia para o vencimento desse tempo esperado, acabara por ser
um poço sem fundo. Construiu um vazio entre o tempo diante dos olhos e o tempo
que podia ter nas mãos, mas que remetia para memória futura, não chegando a detê-lo
nem por um instante.
Não tinha serventia inventariar
exemplos em verificação do atestado. Sabia que não era o rei do tempo que era
seu património. Pois a cada um é dada a pertença a um tempo inespecífico, que
se torna específico mercê dos atos que dispõem a pessoa para a utilização de um
tempo. Olhando para trás, sentia que aqueles trinta e oito anos se tinham
consumido com a instantaneidade da chama de um fósforo acabado de acender. A turbulência
constante ajudara a destituir a validade do tempo. Em abono da desordem, sabia-se
penhorado pelo tempo, pelas medidas do tempo que têm consubstanciação nos relógios
que entram, intrusos, na existência das pessoas. Reconhecia um tique: estava
constantemente a olhar para o relógio, mesmo quando não era preciso saber as
horas em sendo dispensável o cumprimento de horários.
Preso a este paradoxo, tropeçou
noutro. Se jurasse a compulsiva necessidade de rever as bainhas do tempo que
fora sua pertença, com a finalidade de o deixar fluir com o vagar necessário (já
desprendido do tempo totalitário que fora seu algoz), deixava de saber como
conciliar o propósito da viagem (que, entretanto, viera à superfície) com este
reajustamento do tempo. Dera como assente que tinha de regressar a casa. Apesar
de demoras motivadas por contratempos, seguia o plano de voltar a casa. De voltar
a ser o que era antes de ter cismado na fuga (como se isso fosse possível, por
mais não ser que fosse pela transfiguração ditada pela viagem). Ou seja: se
continuasse a ter como tenção o regresso a casa, tinha de se apressar, o que
esbarrava na jura solenemente proclamada de deixar vicejar o tempo no seu vagar.
Tinha de resolver o dilema. As coisas
punham-se nestes trâmites: repensada a utilidade do tempo, e convencido que o
devia deixar passar de acordo com a sua vontade, sem a sua interferência,
deixava de saber quando seria possível patrocinar o regresso a casa; se a
prioridade continuasse a ser voltar ao lugar a que se devolvera a sua pertença,
tinha de abdicar da nova feição do tempo. Não era caso para aflição. Já estava
habituado a encruzilhadas parecidas. E se, dantes, ficava aprisionado pela inércia,
sem saber para onde se atirar quando se confrontava com a encruzilhada, depois
aprendeu: uma encruzilhada não pode ser o esteio do medo, nem o cárcere onde
medra a indecisão. Na dúvida, recusava a dúvida e dava caminho a uma das possibilidades
entreabertas pela encruzilhada. Nem que, depois, a estimasse indevida e os
efeitos da decisão importassem custos vultuosos. Piores seriam as dores da
hibernação que autenticasse a indecisão diante da encruzilhada.
Nestes termos, impunha-se uma deliberação.
Sem demora – ajuizou, alado, na tomada de conhecimento dos termos da demanda. Contudo,
conseguiu deitar alguma temperança no desafio. Era preciso uma decisão, mas ela
não podia ser mestiçada pela pressa. A pressa em voltar a casa apoderara-se
dele. Agora, redesenhara as prioridades. Por mais pressa que sentisse para
emparedar a fuga, a vocação que falava com voz mais nítida era a da nova
textura do tempo, o seu rosto vagaroso, poltrão. Apressar o regresso a casa
podia ser uma precipitação. Era preciso amadurecer a ideia.
Olhando para trás, sentia que o
percurso de vida se tinha consumido com a instantaneidade da chama de um fósforo
acabado de acender. Era como se tivesse renascido.