28.4.17

Correio atrasado (31)


The Clash, “London Calling”, in https://www.youtube.com/watch?v=EfK-WX2pa8c    
Não parava de pensar na pressa que temos para que o tempo passe depressa. Como se tivéssemos nascido destinados à morte (isso é indeclinável), mas depressa nos cansássemos de viver e o tempo fosse por nós desfolhado com o propósito de mais depressa se exaurir, abrindo as portas da morte. Era absurdo. (Como se não fosse bastante o absurdo, tinha pavor da morte.) E, todavia, tão empenhados nas empreitadas encavalitadas no dorso dos planos (e daquelas que surgiam sem contar, mas que contavam para as contas que interessam), numa anestesia venal, nem percebemos que o tempo se esvai e acabamos por não ter mão nele.
Não adianta tirar invenções do alfobre: o tempo corre na sua marcha, a que é ditada pelo imperativo das convulsões temporais que estão acima da vontade humana. Debaixo dessa capa indelével, soergue-se um tempo com diferentes ramificações para cada pessoa. É reconhecível que o tempo tem diferentes diapasões consoante o que as pessoas decidem fazer com ele. O homem velho, propositadamente vagaroso, confessara na véspera: deixou de apressar o tempo, agora que se embebera no tempo e tudo se congeminava numa lentidão devidamente processada. Era como se o tempo viesse às mãos do idoso. Contrariando as imagens feitas, o idoso conseguia domar o tempo, detê-lo entre os dedos extasiados com a inversão dos termos convencionados.
Não podia recusar a convocatória do tempo pretérito, nesta altura em que o significando do tempo ao longo do tempo era hipotecado. A viagem continuava a parecer interminável e a urgência em arranjar ardis para matar o tempo (sem que isso soasse a contradição com a ideia que viera ao pensamento) era inadiável. Ao menos, agora a paisagem diferia. Talvez por voltar a viajar de comboio (o meio de transporte privilegiado na maior parte da viagem), a paisagem mudava constantemente. Ajudava a compor os pensamentos. Ajudava a compaginá-los com recurso ao armário das recordações. Se havia algo que admitia, é que na maior parte do tempo empurrara o tempo para a frente com as mãos ávidas em chegar à posteridade. O tempo presente era, na maior parte dos casos, um vazio. Era entendido como um obstáculo ao conhecimento do tempo futuro. Tinha sempre pressa em chegar ao amanhã, e ao depois do amanhã, e assim sucessivamente. E sempre que chegava o dia demandado na véspera, logo se esgotava a sua utilidade. O provir é perpétuo – toda a gente o sabe. O adiamento do tempo na exata medida da escala do tempo futuro, estando ele de atalaia para o vencimento desse tempo esperado, acabara por ser um poço sem fundo. Construiu um vazio entre o tempo diante dos olhos e o tempo que podia ter nas mãos, mas que remetia para memória futura, não chegando a detê-lo nem por um instante.
Não tinha serventia inventariar exemplos em verificação do atestado. Sabia que não era o rei do tempo que era seu património. Pois a cada um é dada a pertença a um tempo inespecífico, que se torna específico mercê dos atos que dispõem a pessoa para a utilização de um tempo. Olhando para trás, sentia que aqueles trinta e oito anos se tinham consumido com a instantaneidade da chama de um fósforo acabado de acender. A turbulência constante ajudara a destituir a validade do tempo. Em abono da desordem, sabia-se penhorado pelo tempo, pelas medidas do tempo que têm consubstanciação nos relógios que entram, intrusos, na existência das pessoas. Reconhecia um tique: estava constantemente a olhar para o relógio, mesmo quando não era preciso saber as horas em sendo dispensável o cumprimento de horários.
Preso a este paradoxo, tropeçou noutro. Se jurasse a compulsiva necessidade de rever as bainhas do tempo que fora sua pertença, com a finalidade de o deixar fluir com o vagar necessário (já desprendido do tempo totalitário que fora seu algoz), deixava de saber como conciliar o propósito da viagem (que, entretanto, viera à superfície) com este reajustamento do tempo. Dera como assente que tinha de regressar a casa. Apesar de demoras motivadas por contratempos, seguia o plano de voltar a casa. De voltar a ser o que era antes de ter cismado na fuga (como se isso fosse possível, por mais não ser que fosse pela transfiguração ditada pela viagem). Ou seja: se continuasse a ter como tenção o regresso a casa, tinha de se apressar, o que esbarrava na jura solenemente proclamada de deixar vicejar o tempo no seu vagar.
Tinha de resolver o dilema. As coisas punham-se nestes trâmites: repensada a utilidade do tempo, e convencido que o devia deixar passar de acordo com a sua vontade, sem a sua interferência, deixava de saber quando seria possível patrocinar o regresso a casa; se a prioridade continuasse a ser voltar ao lugar a que se devolvera a sua pertença, tinha de abdicar da nova feição do tempo. Não era caso para aflição. Já estava habituado a encruzilhadas parecidas. E se, dantes, ficava aprisionado pela inércia, sem saber para onde se atirar quando se confrontava com a encruzilhada, depois aprendeu: uma encruzilhada não pode ser o esteio do medo, nem o cárcere onde medra a indecisão. Na dúvida, recusava a dúvida e dava caminho a uma das possibilidades entreabertas pela encruzilhada. Nem que, depois, a estimasse indevida e os efeitos da decisão importassem custos vultuosos. Piores seriam as dores da hibernação que autenticasse a indecisão diante da encruzilhada.
Nestes termos, impunha-se uma deliberação. Sem demora – ajuizou, alado, na tomada de conhecimento dos termos da demanda. Contudo, conseguiu deitar alguma temperança no desafio. Era preciso uma decisão, mas ela não podia ser mestiçada pela pressa. A pressa em voltar a casa apoderara-se dele. Agora, redesenhara as prioridades. Por mais pressa que sentisse para emparedar a fuga, a vocação que falava com voz mais nítida era a da nova textura do tempo, o seu rosto vagaroso, poltrão. Apressar o regresso a casa podia ser uma precipitação. Era preciso amadurecer a ideia.
Olhando para trás, sentia que o percurso de vida se tinha consumido com a instantaneidade da chama de um fósforo acabado de acender. Era como se tivesse renascido.

27.4.17

Correio atrasado (30)


Tricky, “Evolution Revolution Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=lWIeVTs94rI    
Um homem velho atravessa a rua. Vagarosamente. Parece transportar o seu peso morto sobre as costas. O ar é compungido. Não sabe se os sapatos estão apertados, ou se apenas apetece percorrer a rua em passo lento, ou se tem dificuldade em locomover-se. Segue o homem na sua deambulação. Quer saber se o idoso vai calcorrear as ruas da cidade durante muito tempo, num desfile de sofrimento. E porque – sem perceber ao início – teve a vontade de saber por dentro as causas daquele penar.
O tempo vagaroso é a medida de tudo. Talvez o homem velho não esteja doente. Seria – continuou a especular – apenas critério para não ficar amordaçado pela contingência do tempo que se quer passado depressa e depois sobram os lamentos de que já não tem serventia usar o tempo que foi despromovido à casta do passado. Ao menos, não era difícil ir na peugada do velho. Paradoxalmente, era até mais fastidioso: caminhar tão devagar, como nunca andara, obrigava a atravessar frequentemente a rua de um lado para o outro e depois vice-versa – e assim sucessivamente; e obrigava a frequentes paragens nas lojas que – ao menos isso – estavam espalhadas ao longo da rua.
Não fazia ideia se o homem velho se sabia perseguido. Em rigor, não era uma perseguição. Ou melhor: era uma perseguição, mas não tinha a ressonância malévola que se embebe numa perseguição. Preferia dizer (a quem o pudesse ouvir nesta demanda) que cuidava de ver se o homem não ia sucumbir à dor que mostrava, lancinante, a cada passo que se estreitava no biombo das pernas que se arrastavam. O homem vagaroso podia precisar de assistência, pois o colapso parecia estar à espreita. Contudo, tudo isto era um simulacro das suas intenções. O que o moveu foi a preenchida curiosidade do passo vagaroso do homem; queria ver se tinha um destino acertado, ou se apenas errava na indiferença orçamentada pela dor intensa que andar causava ao idoso.
Uma luz acendeu-se na faixa limítrofe do pensamento: que se precatasse, que descaía na mesma indignidade da simulação do mendigo. Desta vez, o juízo do seu ato não teria contemplação. Da outra vez, salvou-se da indecência porque o mendigo que servira de mote não era pedinte – também estava a encenar um ardil qualquer. Não parecia que fosse o caso, desta vez. O homem velho tinha idade suficiente para, de acordo com a lei das probabilidades que distribui enfermidades pelas pessoas de mais idade, ter sido acometido por um mal que estorvasse o andar.
Não interessava saber por que o homem tinha saído à rua se lhe custava tanto andar. Era lá com o homem e, em não o conhecendo, não era chamado ao seu conhecimento. O homem andou e andou, por ruas e ruas, sem perceber o seu critério (repetiu algumas ruas). Não hesitou quando chegava a cruzamentos. Parecia saber ao que ia. Só que, ao repetir algumas das ruas, e em andando em círculos, já não tinha a certeza se o idoso tinha a certeza por onde queria seguir. Não parou uma única vez (a menos que os semáforos para transeuntes estivessem com o vermelho aceso). O rosto inamovível, quinze graus inclinado para baixo, continuava impenetrável. Tirando o esgar de sofrimento, o homem parecia-se com o mendigo que quisera imitar: o olhar esvaziava-se no firmamento, mais parecia que o firmamento se fundia com o nada e era no nada que o olhar desmaiava, sem redenção.  Mas não queria continuar à procura de analogias entre o mendigo que afinal era investigador e o idoso com tantas dificuldades para andar.
A digressão, em forma de inocente perseguição ao velho, teve ao menos o mérito de trazer ao conhecimento muitas ruas por onde ainda não passara. Quase se podia dizer que o velho sofrido fazia as vezes de um guia turístico. Especulava, como era costume. A tempestade cerebral, que se seguiu ao fermento da especulação, não teve demora. Em transgressão com o vagar dos passos do homem velho, o pensamento fruía com uma voracidade sem apelação. Percebeu porquê: de andar tão vagarosamente, o pensamento acelerava na inversa medida da velocidade dos passos do velho, como se o pensamento se apressasse em contrapeso do vagar do homem velho.
O velho parou a meio do nada, numa rua que não tinha sequer as lojas respiratórias para o carteiro não esbarrar na lentidão do homem idoso. Hesitou. Para não ser interpelado (podia ser que o idoso já tivesse reparado na perseguição, apesar de não desviar o olhar nem um milímetro), estugou o passo e fez menção de passar à frente do idoso. Ao mesmo tempo, ficou em sobressalto: já fazia muito tempo que o velho caminhava, com as dificuldades a crescerem à medida que a distância se metia nas varizes que enfraqueciam as pernas. O velho estava à beira da apoplexia? Abrandou, imediatamente depois de ter ultrapassado o idoso. Podia ser que o velho precisasse de parar, de folgar as pernas extenuadas – até ele, mais jovem e em mediana condição física, já estava com as pernas carcomidas pela ardência (afinal, tinha mentido a si mesmo: era frouxa a sua forma física).
Quase parou e, a medo, entreolhou pelo quadrante do ombro direito para se certificar que o velho estava parado, mas sem sinais de colapso. O idoso parecia ter sido tomado por uma súbita hibernação. O olhar permanecia ausente no exterior (e esta era a última vez – jurou, com intensidade – que fazia comparações com o mendigo que afinal o não era). As pernas não davam sinais de fraqueza. Não titubeavam na inércia a que se entregara. O rosto não estava diferente do tempo anterior em que andara em errância pelas ruas da cidade. Parou e olhou, sem tergiversar, para a retaguarda. O idoso devolveu ao rosto a autenticidade de feições humanas, quando elas são tomadas pelo conselho das emoções. E estendeu as palavras no espaço (pois o carteiro estava a alguma distância e nas redondezas soava o ruído tonitruante de uma siderurgia em plena laboração):
- Descansa, está tudo bem comigo. Só estou a recuperar o fôlego. Como deves ter notado, já estou a andar há muito tempo. Não te iludas: eu não estou doente, nem me custa a andar, por mais que te pareça o contrário. Caminho no meu vagar, de propósito. A única coisa de que me cansei, nesta vida que já levo longa, foi ter sido atraiçoado pelos querubins que ensinam a dedilhar o tempo com sofreguidão. Já há uns anos que me deixei disso. O tempo, agora, passa va-ga-ro-sa-men-te por mim. E eu meto-me no tempo devagar. Assim tenho a certeza (que até pode nem passar de uma simples impressão – mas não importa) que tenho mais tempo para degustar.  
O carteiro não tinha palavras para retorquir. Desta vez, não ficou envergonhado. O seu devaneio não fora indecente, como da outra vez. O idoso percebeu que não o perseguira com maldade. Estava tudo composto. E aprendeu, naquelas palavras certeiras do velho, que o tempo se pode virar contra as pessoas.

26.4.17

Correio atrasado (29)


Sigur Rós, “Ekki Múk”, in https://www.youtube.com/watch?v=2cAxLZpelmQ    
Teria de abrir a escotilha aos atos suscetíveis de vaidade. Sabia que se desse corda às divagações, em jeito de evasão indeclinável, começaria a perorar sobre a ferrugem que acintosamente prendia a escotilha ao arnês, ou sobre os parafusos enxertados por um mecânico desastrado (uma sua outra personificação com propensão para o boicote quando o céu se despejava de nuvens) que obrigava ao uso de força sobre-humana para libertar as amarras da escotilha. Tinha de parar antes que medrasse no imponderável do detalhe sem significação visível.
A escotilha soltou-se. Não ofereceu resistência. Podia meter a cabeça numa atmosfera diferente. O ar respirado parecia mais leve. Dir-se-ia: do lado ocultado pela escotilha hermeticamente fechada não havia poluição sedimentada no alfobre do tempo. Tinha a impressão de se ter emancipado do ar tempestuoso e, do lado desembaciado da escotilha, ter redescoberto o significado de bonança. O olhar fixou-se no horizonte. Uma tela passava um filme e para o rodapé eram atirados fragmentos resgatados aos atos suscetíveis de orgulho.
Precisava deste bálsamo?” A interrogação depreendeu-se do movimento inusitado a que se dera, porque a catarse habitualmente prendia-se às nuvens plúmbeas que adejavam (e com iteração) sobre a conturbada cabeça. Não demorou a responder, com uma firmeza que seria impossível na véspera: sim, fazia sentido destronar do silêncio e do esquecimento os atos que podiam acender uma centelha de vaidade que daria outra iridescência à sua pessoa. Talvez fosse tempo do ensimesmar. Arrefeceu a chama que acendia este entusiasmo. Não podia, como era habitual, deixar-se dominar pelos braços do vetusto exagero. Esse sempre fora um dos males que o apoquentava.
Episódio número um: era adolescente e lembra-se de ter impedido um menino do afogamento certo numa piscina. A piscina estava quase sem gente. Ao contrário do que era habitual, naquele fim de tarde apeteceu um banho tardio. Nem fazia grande sentido, o banho tardio, pois a nortada era a mesma dos dias anteriores e a água estava fresca. Nadava sem pressa quando sentiu, atrás de si, azáfama e alguns gritos entaramelados com o borbulhar da água. Um menino debatia-se com a profundidade da piscina que não quadrava com a sua dimensão, em não sabendo nadar. Nadou três braçadas e chegou junto do rapaz, levantando-o com a força de um dos braços enquanto o outro mantinha o corpo à superfície. O menino, em apoplexia, tossicava a meias com o pânico, trepando para o seu pescoço, o que tornou pesada a tarefa do salvamento. O rapaz esperneava enquanto se debatia com um princípio de sufocação, tossindo golfadas de água para fora dos pulmões que iam parar ao seu pescoço.
Conseguiu acalmar o menino. A meio da piscina, estabilizou o corpo carregado com o menino. Nadou, a custo, até a conseguir ter pé outra vez. Subiu o rapaz para o parapeito da piscina e perguntou se estava bem. O rapaz acenou com a cabeça, sem conseguir falar. Levantou-se e fugiu a correr, tomado pela vergonha da ousadia que ia custando a vida, se o (futuro) carteiro em sabática não tivesse coincidido na piscina. Não estava ninguém a tomar conta do rapaz. E ninguém viu, desde as cadeiras reclinadas da piscina, ou das varandas dos apartamentos a ela contíguos, a sua proeza.
Ao jantar contou aos pais, derrotando a hesitação. Ninguém lhe deu atenção. Sentiu, até, algum escarnecimento nas perguntas feitas pelo pai (porventura de verificação da veracidade dos factos narrados). Só se arrependeu de ter contado que salvou o rapaz do afogamento. O resto não importava. Nem sequer a fuga apressada do rapaz que tirou dos braços da morte, sem ter tempo para esboçar um agradecimento. A devolução à vida não merece gratidão. Partiu do princípio que é um instinto inerente à condição humana. Estranhamente, sentiu-se mais contente por ter estendido a mão a um náufrago moribundo, do que ter retirado o rapaz dos braços hediondos da morte.
Episódio número dois: ainda rapaz com idade de escola primária, passeava nas imediações da escola com o colega de carteira. Ao dobrarem a esquina, deixando a avenida movimentada em direção de uma rua estreita e secundária, estava uma carteira perdida no chão. Ele apanhou a carteira e abriu-a. Estava repleta de notas. Tiraram as notas e contaram o pecúlio. Era muito dinheiro. (Ao contrário dos tempos de agora, as crianças de então já tinham uma noção da serventia do dinheiro.) Noutro compartimento da carteira estavam os documentos pessoais do portador. Era um homem um pouco calvo, com bigode raso e orelhas prominentes. Zombaram das orelhas. Ato contínuo, olharam um para o outro. Tinham à sua mercê uma fortuna. Podiam não contar aos pais e gastar o dinheiro em segredo, naquilo que as crianças de então gostariam de gastar caso tivessem em mão uma quantia tão grande. Olharam-se outra vez, em demorado silêncio. Começaram a perceber, pela duração do silêncio, que os propósitos materialistas não podiam ser consumados: “este dinheiro não nos pertence”, disse para o amigo, que anuiu: “tens razão. Deve fazer falta ao dono da carteira.
(Na sua ingenuidade, não lhes ocorreu – como ocorreria se alguns anos mais estivessem depostos nos seus corpos – que tantas notas amealhadas numa carteira podia ser sinal de dinheiro que se preparava para uma operação de branqueamento. Com aquela idade, só sabiam da existência de máquinas de lavar roupa e de lavar louça.)
Ele guardou a carteira em lugar seguro, dentro da mochila onde estavam os livros da escola. Foram à esquadra da polícia vizinha da escola. Narraram o acontecimento ao polícia que estava no balcão de atendimento. O polícia felicitou-os, guardou a carteira e prometeu que seria devolvida, e intacta, ao dono. Dias depois, a escola foi informada da proeza dos rapazes. Receberam uma comenda cada um em cerimónia a que assistiram todos os professores, alunos e funcionários da escola, na presença do homem que perdera a carteira, do chefe da polícia e do presidente da câmara.
(O presidente da câmara precipitou-se a tirar uma fotografia com os dois rapazes, fotografia que saiu na edição do dia seguinte do jornal local, o edil de sorriso rasgado como se a proeza tivesse sido sua, e os rapazes tímidos e assarapantados na presença de homem tão frenético).
Ainda ouviu um professor a comentar com o outro, no fim da cerimónia, enquanto olhava com atenção e vaidade para a medalha recebida: “pobres rapazes, nem sabem para que serve o dinheiro. Ai se fosse comigo, a esta altura a minha conta no banco estava muito gorda.
Episódio número três: pouco tinha passado dos vinte anos quando se apaixonou por uma rapariga. Sentia não lhe ser indiferente. Ela corava na sua presença e não conseguia reprimir olhares indiscretos. Mas suplicava para ele não investir, pois o namorado tinha feito o pedido de casamento há poucas semanas. Ele combateu-se, entrou em negação. E retirou-se, jurando que não queria voltar a ver a rapariga. Sentiu orgulho na recusa em assumir o que tomara conta de si.  Por respeito à rapariga. Nesse mesmo tempo, percebeu que começara aí o tirocínio nos efúgios sucessivos em que se especializou.
Deu por concluída a evasão pela escotilha. Preso, outra vez, às divagações estéreis, ao perceber que aquele episódio fora de vã glória, esqueceu-se de outros episódios com idêntica igualha. (Ou, talvez, já não houvesse mais para arregimentar).