9.6.21

Maré que dispensa esporas

Cassete Pirata, “A Próxima Viagem”, in https://www.youtube.com/watch?v=nDp_fFtbLzc

O tridente de Neptuno está escondido no mar fundo. Nem com a escotilha desembainhada se consegue alcançar o tridente de Neptuno. Mas nem todo o sal do mar chegava para espreitar através das paredes intransigentes da alma. Mas não queremos saber de Neptuno se temos Janus aninhado nas palmas das mãos. 

Somos viandantes perenes. Mesmo quando não saímos de casa. Não precisamos da paisagem que se oferece como inauguração. Aprendemos a cinzelar as paisagens com a doçura de uns dedos que se entrelaçam e deixamos aos mares as suas marés triunfais. O salitre vago emprenha-se na pele duradoura. Dizemos: é o mar, a sua janela que irradia o farto espólio de que somos mecenas.

Dão-nos um mapa. E nós, em vez de escolhermos o lugar próximo a merecer visitação, desenhamos o coldre onde deixamos as mãos vagas para guarnecer as paisagens. Vamos ao fundo das ruas e de mãos nuas enchemos a alma com os odores e as formas e os idiomas e as cores que nos são propinadas. Não precisamos de figuras tutelares; nestes preparos, não há ninguém mais ministeriável do que nós. Administramos os mistérios com a diligência pedagógica. Somos, por dentro do sortilégio que em nós habita, a viagem incessante.

      Guardamos os postais ilustrados. Para cada postal reservamos um poema módico, onde são vertidas estrofes chãs. Quando o tempo se condensa num verbete, voltamos aos postais ilustrados. Voltamos, com saudade já da viagem que está em demanda no tempo vindouro. Não refazemos as estrofes; preparamos os dedos para as estrofes que vierem a preceito da viagem depois. Sem sair do sítio, emprestamos os corpos e os sentidos ao mundo que se nos serve em amplexo. Prometemos ser zeladores do mundo que não pede meças à generosidade quando se lembra de nós.

   Cortejamos as paisagens diletantes que se enamoram do nosso olhar. Não juramos empreendimentos megalómanos. Apostamos: a devolver ao mar uma tabela de marés. Uma tabela que seja o tributo a todas as paisagens que cuidaram de nós e daquelas que se prestam a sê-lo.

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