23.6.21

Da água que dá de comer

Sault, “Free”, in https://www.youtube.com/watch?v=_xWmPGhqWRM

As flores experimentam a decadência, mostrando-se senescentes na jarra que é a sua morada. No fundo da jarra, os sedimentos angustiantes das flores que já não alcançam água. A água extinguiu-se. Os seus últimos mililitros, devorados pelas flores sedentas e perdidos na evaporação. A morada das flores tornou-se num ermo. Num lugar assassino.

Há quem não dê aval ao clamor silencioso das flores que agoniam. Há quem se impressione com o caule dobrado para trás e as pétalas enrugadas. Não querem que o quadro seja a expressão de um torpor. Querem reavivar as flores. Procuram a água de que as flores precisam para voltarem a ser vida. Não têm a certeza de que essa água consiga reanimar as flores. Não custa tentar despojá-las do coma. 

Na pior das hipóteses, as flores cadáveres saberão que alguém as tentou trazer de volta à vida. Um pensamento inútil. Quem assim elabora procura sossegar as dores interiores que são uma consumição. Sabem que em estado cadavérico nenhum ser vivo deita a mão a impressões, sejam quais forem. Talvez seja a forma de aliviarem a culpa dos outros que deixaram as flores em tamanha decadência. Ou talvez nada disso importe, a não ser uma derradeira tentativa de reanimação das flores.

Verte-se a água, vagarosamente, na jarra que é a morada das flores decadentes. Espera-se que o tempo faça o resto. Espera-se que a água dê de comer às flores murchas. E que elas voltem a ser vida. Não se sabe se as flores murchas cruzaram o limiar do inevitável e estão condenadas a esmaecer em seu leito de morte. Ou pode ser que ainda haja uma última centelha e que elas sejam resgatadas do estado comatoso. Espera-se que a água seja aquilo que dela se pensa. Uma fonte de alimento. O instrumento da redenção de um corpo vivo que se arrasta pelos corredores onde se pressente a morte.

As flores voltam à vida. Mostram, enquanto se saciarem na água periodicamente renovada, que são imarcescíveis. Enquanto o seu próprio ciclo de vida não tropeçar na finitude. Até lá, não são a prova da decadência, mesmo que assim se mostrassem pela incúria de quem delas cuidava.

 

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