11.6.21

Fuligem (short stories #327)

Goldfrapp, “Black Cherry” (live at iTunes Festival), in https://www.youtube.com/watch?v=uuvgX1bA9Ok

          Uma filigrana desce sobre o sol-posto e povoa a névoa tardia. Os olhos cansados demoram-se na fuligem que toma conta do horizonte. O entardecer funde-se com a infância da noite. O corpo acusa o espaço indeterminado que cavalga no crepúsculo. Um copo de vinho testemunha o torpor. As pessoas passam na rua. Vão devagar, como se estranhamente quisessem demorar o dia de que estão cansadas. A noite não se entedia, dizem. Prepara-se para acolher as pessoas que têm na noite um balão de oxigénio que adia o estertor do dia. Pois a noite abraça dois dias: o dia que finda e o dia que nasce com o beneplácito da noite. Enquanto falam, traduzem a limpidez dos rostos que renascem nas esplanadas, nas mesas dos restaurantes, no cais sobranceiro ao rio, à espera de uma maré-alta. A fuligem é a moldura da noite, no desembaraço das silhuetas que corrompem as sombras. Não é preciso ter medo da noite. Os fingimentos disfarçam-se na lucidez que não desarma. Não entonteçam os atores que se investem na fuligem da noite. Antes que seja lei o derradeiro cansaço, a noite mergulha na madrugada. A fuligem desce como se precisasse de recolher o orvalho que nasce do chão. É essa névoa discreta que anestesia os corpos. Estão preparados para o dia posterior, cumprido o ritual do sono. As horas não amadurecem. Antecipam o passado que será lembrado ao acaso. Sê-lo-á com a caução da fuligem disfarçada, o povoar do frescor matinal que desautoriza a noite e os corpos que pedem sono. No estuário onde se compõem as palavras furtivas, o dicionário das almas cede ao deslumbramento. O enlaçar da noite à manhã é um sortilégio. É a ponte levadiça que permanece imóvel para que a véspera se abrace ao dia sucessivo. O maior sortilégio é as pessoas não darem conta deste sortilégio.

Sem comentários: