21.6.21

Mito mumificado (atleta de baixa competição)

Yann Tiersen, “Poull Bojer”, in https://www.youtube.com/watch?v=dwW1bI6epno

Dizem: cara de poucos amigos. Mas que cara tem quem tem poucos amigos? Uma má cara? É por ter poucos amigos que exibe uma (má) cara? As hossanas à abundância continuam a fazer parelha com o mundo dominante. Distraindo os cidadãos, que são desconvidados das substanciais coisas que deviam importar.

É um dos muitos mitos cristalizados. Um homem tem de ter amigos. De outro modo, é misantropo. Não ocorre, a este sentenciar vulgar, que um homem pode não sentir afinidade com os outros. Pode, até, não se disfarçar na hipocrisia que é a casa comum de todos os que fingem tolerar os outros só para ganharem um lugar no grupo. Dizem que é o selo da pertença. Ninguém consegue ser eremita.

Se ao menos fosse rigoroso o reconhecimento da mumificação dos mitos. Não é um juízo de valor. Para ser um mito, é uma a prática que se enquistou. Faz parte da identidade e as pessoas nem chegam a intuir a camada submersa de onde poderiam interrogar o mito. Os mecenas do conservadorismo não admitem o questionamento. Os mitos recebem-se como património herdado. Aceitam-se. Não se acicatam. Remexê-los agrava as cicatrizes que disfarçam as feridas abertas. O mito é a maquilhagem que aplaca essas feridas.

Os compêndios instruem as almas carentes de ensinamentos: os mitos mumificados estão embebidos porque as pessoas reivindicam uma pertença. Grande parte do cimento dessa pertença encontra-se nos mitos avulsos que constituem um todo inorgânico. É algo de metafísico. Convoca a crença e redireciona para a dogmática. Dos mitos não se duvida para não contrariar o significado de um dogma. O raciocínio circular asfixia o pensamento autónomo.

Os dogmáticos deviam saber que os dogmas reduzem os destinatários a uma pertença acrítica. São intimados a acreditar no mito, quase apenas porque é um mito, levando pelo caminho parte importante do sentido crítico, que fica em estado vegetativo. As pessoas não passam de uma fração do que podiam ser. Sem darem conta, o que agrava o estado das coisas. 

É como se fossem todos – todos os que acriticamente se deitam com os mitos mumificados – atletas de baixa competição. Marionetas inconscientes de o serem. Sem imaginarem como são meros peões às mãos de interesses de outros que colonizaram a lucidez.

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