Não pedissem ao homem dos pés grandes que participasse numa dança. Não era o seu propósito. Tomando o pulso às limitações, ele sabia que não era boa a figura que ficava para memória futura. Não o acusassem de incúria: o homem dos pés grandes prestou-se ao papel de desastrado dançarino, mas avisou, em devido tempo, que a estética podia ficar ressentida.
A culpa do homem dos pés grandes era indireta. Quem o mandava apalavrar-se a solenes cerimónias onde o bailado faz cumprir um ritual? Ele sabia que a sua missão secreta era parecida com a de um diplomata, e os diplomatas (entre outros misteres) devem comparecer a estas soirées animadas. E, comparecendo, o homem dos pés grandes não podia escapar a cada milímetro do ritual. Umas senhoras conspícuas estavam à espera de um par para ensaiarem o donaireartístico do bailado. Elas ajudavam a disfarçar o hediondo da diplomacia, não deixando que a diplomacia fosse o alforge da hipocrisia.
O homem dos pés grandes não tinha culpa do seu corpo. Não podiam pedir ao homem dos pés grandes para ser bailarino – e não lhe pedissem para ser um arremedo de diplomata. Ninguém consegue disfarçar as impossibilidades atrás de uma pose que se nobilita a cada palavra escolhida com precisão milimétrica, a cada gesto que exsuda charme. Ninguém consegue ser parte do ritual se não se desembaraçar a preceito das exigências do bailado em que terminavam as soirées.
Se houvesse um caderno onde fosse anotada a destreza para o bailado, o homem dos pés grandes reprovava. Não tinha remédio. A cada soirée, a cada dança empreendida, o homem dos pés grandes acertava com os seus grandes pés nos pés pequenos das senhoras. Elas não escondiam o esgar de desprazer e, sem demora, punham termo ao bailado. Queixavam-se dos pés grandes do homem, de como ele não nascera para levitar o seu corpo pesado e desengonçado no tabuleiro da dança. Os seus pés grandes eram o obus que desmentia a diplomacia.
O homem dos pés grandes não ficava triste. Muito embora a sua má fama começasse a ser popularizada, saía da função convicto que fizera diplomacia. Era esse o propósito do estipêndio que lhe pagavam. Só as senhoras que foram suas vítimas é que murmuravam sobre os pés grandes do homem como o selo da sua balística. Mas não fazia mossa no homem dos pés grandes. A converseta não passava do setor feminino.
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