22.6.21

Celebração (short stories #329)

Neil Young, “Harvest Moon” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=xMjDc8MJotU

          Não sabíamos dos sortilégios escondidos no crepúsculo da memória por haver. Não era algo que nos angustiasse. A maldição do futuro é uma incógnita por revelar e que apenas se desfaz no dorso do tempo à medida que se transforma em acontecimento. Não ambicionávamos ser contrabandistas das marés vindouras. Sabíamos que era inútil esperar pelo olhar das marés consecutivas e pelas garrafas perdidas no meio do mar. Seriam garrafas abandonadas por marinheiros, na compensação da solidão. Sem mensagens por teor a fazer de vez do whisky que alegrou um par de marinheiros. Juntávamos as mãos na areia molhada e desenhávamos as palavras que dançavam na carne viva do pensamento. Palavras sempre avulsas. E por mais que delas não se colhesse uma frase notória, sabíamos que com essas palavras éramos poetas de uma vida inteira. Celebrávamos. Celebrávamo-nos. Sabíamos que, na nossa insignificância enquanto átomos pertencentes a uma constelação de rostos sem nomes, éramos como as árvores centrípetas que davam alimento às vidas que transformámos num destino. Não esperávamos pelo futuro. Não estávamos sentados no passado, que tivera um lugar na ossatura do tempo. Celebrávamos o percentil do tempo que nos era dado a apreciar. O tempo tangível, esse que se pode apreciar. Os instantes que sabíamos demorar. Outros diriam que esses instantes ficavam emoldurados numa partitura onde se compunha a identidade. Não era o nosso caso. Deixávamos as memórias aos penhores do passado. Sabíamos que as memórias, sozinhas, não são matéria suficiente para agradar ao tempo presente. Era esta a única ditadura que aceitávamos. Uma ditadura que não se impunha sobre a nossa vontade; era o produto da nossa vontade, para depois se depor nos nossos corpos e dela sabermos as costuras para desembaraçar as encruzilhadas sem salvo-conduto. A celebração é perene, enquanto de nós houver algo para os dias contarem. Se tudo correr como contamos, os tempos não têm fim.

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