A terra do gelo não trocava os beijos por nada. Não se falasse de degelo. O vento não se coibia: a toda a hora ciciava contra os monopólios opulentos em que as regalias se eternizavam. Não era disso que se falava. Parecia que ninguém se importava com o abismo entre os abastados e os demais, contrariando Marx. Todos esperavam pelo vento. Por mais que uns abencerragens insistissem que a luta de classes é o motor da História, os demais importavam-se com a morte. Com a ideia da morte. Como se pode ter a ideia fixa da luta de classes se todos morrem, sem olhar às diferenças de património? A todos, sem distinção, as maleitas mais hostis abatem-se implacavelmente. Podiam todos esperar pelo vento para saberem que novas vinham ungidas pelos deuses que guardavam as profecias. Estes nunca confessavam as profecias (nem sob tortura). O vento limitava-se a destapar o véu e a deixar a incógnita menos órfã. O segredo estava na hermenêutica do vento. Dependia dos narizes. Pobres dos que sofriam de anosmia. Eram deixados para trás na altura dos pressentimentos. Uma indústria de escansões do vento começou a prosperar. Era notório que as pessoas queriam ter uma ideia sobre o porvir. Desenvolveu-se uma concorrência feérica, com os predestinados dois passos à frente dos demais como distintos zeladores do vento que antecipava o provisório. As pessoas eram vítimas de dois logros: queriam saber das costuras do futuro e acreditavam no primeiro aldrabão (nunca tido como tal, contudo) que fosse exegeta do vento. Não sabiam que saltar por cima do tempo para agarrar o futuro a destempo era uma heresia. Sedados pelo apetite do futuro, tinham exaurido a reserva de lucidez para identificar os burlões do tempo a destempo. Ninguém queria saber do tempo presente e do vento a preceito. Eram vítimas colaterais de si mesmos.
15.6.21
Se o vento estiver de feição (short stories #328)
The Durutti Column, “English Landscape Tradition”, in https://www.youtube.com/watch?v=sIftmphqcSY
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