18.6.21

Espião escondido com o rabo de fora

PJ Harvey, “This Is Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=STxXS5lLunE

Os espiões não vestem uniforme. Para serem espiões e se fazerem passar como tal não podem ser reconhecidos como espiões. Devem ser como fantasmas: ninguém os vê, mas conseguem sobressaltar meio mundo. O espião aprendeu a cartilha toda. Debitava-a de trás para a frente. Não foi por acaso que teve vinte valores nas provas de aferição para a função.

Mas o espião era um distraído incorrigível. Esquecia-se dos objetos banais em lugares improváveis. Teve sempre a sorte do seu lado. Os esquecimentos e as distrações nunca o comprometeram. Era como se fosse espião por dentro de ser espião. Um bom espião – diz-se – consegue passar entre os pingos da chuva sem se molhar. Ele fazia-o melhor do que ninguém. A sua cotação entre as chefias era das melhores entre os seus pares.

Mas houve um dia em que o espião se enamorou (talvez não seja a palavra fidedigna) por uma mulher voluptuosa que entrou por acaso na sua vida – ou talvez não tão por acaso. A cada encontro, a cada palco onde a intimidade crescia, o espião e a apaixonada trocavam segredos encerrados nos túmulos que são as vidas das pessoas. A cápsula de ferro do espião estava resguardada. Ele sabia (fazia parte da extensa cartilha da espionagem) que há segredos que não se contam nem sob tortura. Os momentos passados com a apaixonada estavam longe de ser uma tortura. Que ninguém (os superiores hierárquicos, os interesses estabelecidos e a pátria) receasse que o espião comprometesse a sua diligência. A literatura teve os seus episódios de mulheres infiltradas que conseguem extrair os segredos insondáveis de espiões que se julgava serem à prova de bala. Ele estava ao corrente. Precaveu-se.

Uma noite de volúpia terminou com o casal apaixonado em total devassidão. Um cocktail explosivo de prazeres carnais extravagantes, bebida e drogas. O espião não conseguiu pôr um freio e deixou de ter as rédeas. A língua destravou-se na exata medida do oblívio da cartilha. O cocktail explosivo teve repercussões. O espião começou a falar, ininterruptamente. E, ela, fingidamente atónita, a registar tudo com a sua memória fotográfica. 

Na manhã seguinte, ela desertou da paixão arrebatadora, deixando o espião inconsolável. Restou-lhe saber que a formatação devia ter resultado: ele fora treinado para passar segredos que eram a antítese dos segredos que continuava a guardar. Soube, à data da reforma, que os segredos de que era tutor eram os tais segredos virados do avesso. Ele fora um espião infiltrado entre os espiões, um agente duplo virado do avesso. À custa das suas mentiras, muito a pátria (e os interesses instalados) tiraram partido à custa dos países adversários.

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