Os canhotos, estruturalmente discriminados, juntaram-se em sindicato. Queriam que ser canhoto não fosse fonte de uma discriminação social. Não queriam ser obrigados a tomar o lugar em carteiras de escola que foram feitas para quem escreve com a mão direita. Este foi o exemplo escolhido para a campanha que inaugurou o sindicato dos canhotos.
Os canhotos acusavam deus de se ter esquecido deles. Primeiro, porque lhes deu uma genética que se arruma contra a maré dominante, deixando-os escravizados a uma despertença. Segundo, não contente (ou, talvez, apenas distraído – hipótese em que seria de recusar o mito da omnipotência de deus) –, deus não foi tecedor das recomendáveis compensações aos canhotos. Deus terá deixado os canhotos ao deus-dará. Não foi ele que inventou a discriminação positiva.
Os canhotos não perceberam o oximoro contido no seu raciocínio. Se deus tivesse existência comprovada, nem eles seriam canhotos (não os haveria, o mundo ungido por uma portentosa perfeição, à imagem de deus) nem, na hipótese de terem sobrado para o logradouro dos discriminados (por serem canhotos, aproveitando-se da distração divina), seriam vítimas da organização do mundo que não os tem em conta. Ainda assim, convocavam a figura tutelar de deus. Porventura na esperança, não vã, de que deus os viesse acautelar a desoras.
Parecia uma demanda condenada ao logro. O sindicato dos canhotos não fazia chegar a voz aos ouvidos dos cidadãos comuns e dos poderosos. Continuavam a ser o que sempre foram: pessoas cobertas pela infâmia do oblívio, com o conspirativo beneplácito de um deus por acordar. Imersos nesta deslembrança geral, os canhotos urdiram um protesto sublime: acusariam deus de não ser perfeito, erodindo a mitologia que anda de braço dado com deus. Só um deus imperfeito podia caucionar os canhotos como vítimas do esquecimento da sociedade – do esquecimento do próprio deus, assim e confirmando que, para além de não ser omnipotente, também não é omnipresente. As imperfeições dos canhotos seriam as arestas das imperfeições do próprio deus.
Do outro lado da barricada, os devotos de deus apostrofaram os canhotos. Confirmava-se que os canhotos eram uma discreta aberração da espécie. E se canhotos havia, não era por distração de deus, que deus não se distrai – nem a própria noção de deus é compatível com a ideia de imperfeição. Os canhotos foram desafiados a deixarem de ser piegas e de endossarem para deus o fardo da sua inadaptação. Assim como assim, eles conduzem pelo lado direito da estrada e nunca se queixaram do síndrome britânico que se manifesta na sensação desconfortável de quem viaja no lado errado da estrada.
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