24.6.21

Impoliticamente correto (sem ser boçal)

Nils Frahm, “Fundamental Values”, in https://www.youtube.com/watch?v=A-y-le7hPEw

Petição de princípio: como gerar a angústia sem acabar refém dela?

As modas são a pior prisão. Escondidas sob o verniz do “consenso”, aperaltadas como eufemismo da “imensa maioria” – com o que de discriminatório isso envolve, pois fica provado que a dissidência merece ser abjurada –, o pensamento dominante pode ser um catálogo de totalitarismo disfarçado. Sob pretexto de rejeitar discriminações, arrepia-se o caminho da discriminação. Não fica nítido se a discriminação que resulta da negação de discriminações é intencional, ou apenas produto de um excesso de voluntarismo.

E assim se expõe a não linearidade das propostas a concurso. Pode-se negar o racismo sem cair na exacerbação antirracista que contém em si o seu totalitário fermento. Pode-se recusar o discurso e a prática homofóbicos sem fazer sentir que a heterossexualidade é um comportamento de risco. Pode-se protestar contra um estar misógino sem perfilhar extravagâncias que, muitas vezes, colocam os homens no limiar do intolerável. Pode-se denunciar a xenofobia e as execrações nacionalistas sem normalizar as propostas que gravitam noutra esfera totalitária. Pode-se rejeitar a ditadura do politicamente correto sem deixar de ser impoliticamente correto.

 Há dias, um músico lamentava algumas canções do seu reportório que evocam a malparida superioridade masculina e levantam o véu sobre a mulher enquanto objeto sexual. Não interessa que esse músico seja conhecido pela sátira e por reproduzir, nessa sátira, um laboratório do que é a sociedade. Confessa que deixou de tocar essas músicas ao vivo, porque foi notando o incómodo que elas geravam em algum público e até foi confrontado com reações hostis. Não interessa que as letras dessas músicas sejam a sátira de um comportamento reprovável. Não fosse necessário fazer legendas para a cognição dos eruditos, dir-se-ia que a sátira opera como fator de censura do que é satirizado. A liberdade de expressão, vértice da criatividade artística, já teve melhores dias.

Um dos problemas do politicamente correto que se abate como código de conduta indeclinável é insistir no mesmo erro de outros setores que também são alvo dos seus arautos. Tal como os setores mais retrógrados da igreja, os mecenas do politicamente correto advertem os incautos que não se brinca com coisas sérias. O outro problema, é o devir totalitário que se derrama sobre o “cidadão consciente” – o cidadão aceitável: dizer-se, ou apenas deixar em forma de insinuação, que existe um código de conduta indeclinável é um cercear da liberdade que se insubordina contra os seus fautores. Ou que deixa à mostra o seu código genético.

Talvez a válvula de escape esteja no contínuo posicionamento crítico que recusa aquartelamentos herméticos. Os exageros, partam de onde partirem, são a má moeda. Antes continuar a ser impoliticamente correto.

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