29.6.21

O salva-vidas usava baton

Zero 7 ft. Lou Stone, “After the Fall” (live session), in https://www.youtube.com/watch?v=u55upGlscKg

O dia estava fresco, o sol levantara-se há pouco. Ninguém na praia. Não era preciso obedecer à sinalética que descruza os veraneantes consoante estejam de entrada ou de saída da praia. Não havia vivalma. Rareavam, até, os automóveis. A cidade acordava tarde. Deu ao dia umas horas de avanço.

Só os homens do lixo e um autocarro de passageiros aqui e outro ali tinham a ousadia de desterrar a noite que, ao que parece, entrara pelo dia adentro. Os mandamentos dos ensonados faziam fé na penumbra que se disfarçava de claridade matinal. Talvez a véspera tivesse sido de folia, uma daquelas celebrações próprias do início de Verão em que, a pretexto de consagrar um santo padroeiro, liberta as pessoas para o hedonismo. Mas a consulta ao calendário não revelou uma efeméride. Talvez fossem apenas as pessoas a adiar o começo da segunda-feira.

Parecia que o dia estava mandatado sob consignação. À espera dos primeiros bravos que se cansassem do sono tardio. Na praia, as primeiras almas começaram a sondar as sobras da maresia que sinaliza a humidade, aquela ponte entre a noite e o dia que tem o nevoeiro como mediador. O nevoeiro não tardava a dissipar. As pessoas começavam a não precisar de agasalho. À medida da sua temperada subida, o sol fazia sentir o abrasear. Era como se um chamamento silencioso trouxesse mais pessoas para junto do mar. Dizia-se: antes que esteja a nortada que afeia a tarde, aproveitemos o sol temperado.

O salva-vidas estava de atalaia à entrada da praia. A sua musculatura impunha respeito. Com um gesto firme, direcionava as pessoas para os lugares certos. A peste ainda amedronta os temerários. De acordo com o salva-vidas – devidamente instruído pela propaganda do ministério da tutela – os despachados que se aliviaram de medos devem ter o devido acompanhamento pelos mais esclarecidos. Ele estava entre os mais esclarecidos.  

Umas mulheres menopáusicas, em magote, estavam deslumbradas com o salva-vidas. Avivando memórias, segredavam desejos com o salva-vidas. Se soubessem que o dia não começa a meio da manhã, o rapaz talvez não as destinasse à indiferença. Não sendo assim, elas só puderam notar (descontadas as fantasias sem confissão) o baton nos lábios do salva-vidas. 

Deve ser umas destas modernices. Homens com laivos femininos – pressentiu uma das mulheres.

 - Não sejas parva. Então não se percebe que é baton para proteger do sol? – ripostou outra, mais conhecedora da indústria dos cosméticos.

Num salto no tempo, a véspera da noite, quando o entardecer desmaia no estertor da luz diurna, devolveu o lugar ermo que era a praia fora da estação alta. A nortada ainda não dera tréguas. O fim do dia era o sinónimo do vendaval. Àquela hora, o salva-vidas já não personificava o salva-vidas. À civil, devolveu aos lábios a sua cor natural.

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